segunda-feira, 8 de abril de 2024

Rulfo, Rolleiflex



No livro sobre Rulfo (Había mucha neblina o humo o no sé qué), a aproximação que Cristina Rivera Garza faz, contudo, não é com Leskov e Benjamin (como comentei aqui), e sim com Kafka: Rulfo, assim como Kafka, viaja constantemente a trabalho - e a partir dessa comparação, desse contato, emerge um segundo eixo de interesse: a técnica e a tecnologia, as inovações nos dispositivos e nas próteses, algo que se encontra em Kafka (seu interesse pelo cinema, a máquina de escrever Oliver 5 que usava no trabalho) e também em Rulfo: Rivera Garza escreve que Rulfo tirou, ao longo da vida, mais de sete mil fotos, das quais apenas 500 foram publicadas (a publicação do primeiro conto de Rulfo é de 1945; a publicação das suas primeiras fotos, 1949; ele começou com uma Leica 4 x 4 e depois teve três Rolleiflex 6 x 6, uma delas comprada na Alemanha - a obra fotográfica de Rulfo começa antes da literária e continua depois de 1955, quando ele abandona a literatura).

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Trabalho, escuta


Cristina Rivera Garza, em seu livro Había mucha neblina o humo o no sé qué (uma investigação narrativa e ensaística sobre Juan Rulfo), enfatiza, em primeiro lugar, a dimensão de Rulfo como trabalhador - as atividades nas quais se envolveu para ganhar dinheiro, sustentar a família, etc - e, em paralelo, sua disposição (por vezes, quase uma necessidade) para percorrer o interior do México: nesse ponto específico, o Rulfo de Rivera Garza se aproxima (se mistura) ao Nikolai Leskov de Walter Benjamin, aquele que aparece no ensaio sobre o "narrador" ou "contador de histórias", já que Leskov também ligava o trabalho cotidiano à literatura: Rulfo e Leskov, viajando a trabalho (o primeiro foi agente de vendas da empresa Goodrich-Euzkadi; o segundo, caixeiro-viajante), escutavam histórias e se colocavam à disposição dos indivíduos anônimos que encontravam pelo caminho (mais tarde transformando o escutado em escrito, em ficção, em obra).

sábado, 30 de março de 2024

Cartas a Harriet




1) Ler as cartas que Joyce enviou para Harriet Weaver foi uma experiência transformadora (algo recorrente na leitura de cartas: os detalhes, a revelação às vezes repentina de uma subjetividade, de facetas pouco exploradas dessa subjetividade): acompanhar os detalhes sobre as doenças e as operações oculares de Joyce (nomes de médicos, descrição de procedimentos); os momentos em que Joyce fala de si como chato e enfadonho (e também como o escritor responsável por uma obra chata e enfadonha, o Ulisses); os detalhes sobre os filhos, a trajetória como cantor de Giorgio, os problemas mentais de Lucia e também sua atuação como artista de iluminuras.

2) Sobre o Ulisses, escreve Joyce em 20 de julho de 1919: "Confesso que é um livro extremamente cansativo mas é o único livro que sou capaz de escrever no momento. Durante esses dois últimos anos em que recebi seus donativos sempre tive o pressentimento (que agora se provou falso) de que cada episódio do livro à medida que ele avançasse iria gradualmente alienar a solidariedade da pessoa que estava me ajudando" (Joyce, Cartas a Harriet, org. trad., Dirce Waltrick do Amarante e Sérgio Medeiros, Iluminuras, 2018, p. 49).

3) Uma das cartas mais interessantes é aquela de 17 de janeiro de 1932, quando Joyce escreve para agradecer a mensagem de pêsames de Harriet (o pai de Joyce morre em 29 de dezembro de 1931). Joyce escreve sobre o pai: "Ele pensou em mim e falou de mim em voz alta no seu último momento" (uma nota da tradução acrescenta: " 'Diga a Jim que ele nasceu às seis da manhã', disse John Joyce em seu leito de morte. James Joyce havia escrito a ele algum tempo antes perguntando a hora de seu nascimento, porque um astrólogo estava fazendo seu horóscopo", p. 114).

sexta-feira, 22 de março de 2024

Diga-me o que comes


"Nunca li nem ouvi falar da frase de Marx Diga-me o que comes e eu te direi quem és na minha juventude, mas isso era óbvio para mim, eu via o que os clientes da minha mãe compravam na mercearia de acordo com o bolso deles. Eu sabia muito bem em que dia o auxílio governamental 'caía'. Dizer que 'eu sabia muito bem' não é muito preciso, era esse mundo que me moldava, não era preciso ouvir para saber. As palavras ligadas ao trabalho, à contratação e à demissão, 'fazer cortes' etc., entraram no meu vocabulário naturalmente. Eu as escutava no café, ao lado da mercearia" 

(Annie Ernaux, A escrita como faca e outros textos, trad. Mariana Delfini, Fósforo, 2023, p. 70-71).

*

"Há nações em que as pessoas se escondem ao comer. Conheço uma senhora, e das maiores, que tem essa mesma opinião de que mastigar é um gesto desagradável: que rebaixa muito a graça e a beleza das mulheres: e não gosta de se apresentar em público com fome. E conheço um homem que não tolera ver os outros comerem nem que o vejam, e foge da presença deles muito mais quando se enche do que quando se esvazia. E no império do grão-turco se encontra grande número de homens que, para se mostrarem superiores aos outros, nunca se deixam ver quando fazer suas refeições; que só fazem uma por semana; que se cortam e trincham o rosto; que nunca falam com ninguém" 

(Montaigne, "Sobre versos de Virgílio", Os ensaios, trad. Rosa Freire D'Aguiar, Penguin Companhia, 2010, p. 438-439).

quarta-feira, 13 de março de 2024

Cumpleaños



1) No final de seu livro Cumpleaños, como é seu hábito, César Aira coloca a data: 18 de julho de 1999. O livro começa com a informação de que o narrador acaba de completar cinquenta anos - Aira nasceu em 23 de fevereiro de 1949. Embora não apareçam as datas no texto, é possível ler Cumpleaños como um diário: existe uma rotina, dias que passam, um narrador-escritor que fala do seu cotidiano, que revisita cenas do passado, que conhece pessoas novas e que relata esses encontros (relatando, depois, os efeitos desses encontros: a ocorrência mais importante é da garçonete do café na cidade natal que diz ao narrador-escritor que também ela escreve).

2) Voltei a pensar no livrinho de Aira depois de ler outro livro, Espectáculos de realidad, de Reinaldo Laddaga, que comenta Cumpleaños pelo viés da ficha, da notação, da anotação rápida, da escritura que leva à superfície do relato as suas condições de possibilidade, da literatura que se apresenta como processo inacabado e assim por diante (Aira é lido em conjunto com Mario Bellatin e João Gilberto Noll, por exemplo, e também Sarduy e Osvaldo Lamborghini - que inclusive é comentado em paralelo a Aira, que em Cumpleaños fala de Lamborghini como um de seus dois amigos que morreram cedo demais). O argumento de Laddaga, por sua vez, é amplamente informado por um texto de Denis Hollier - "Notes (On the Index Card)" - sobre Barthes e Michel Leiris.

3) Cumpleaños mostra que, por mais regida pelo acaso que seja a obra de Aira, sempre há um horizonte alternativo (suplementar) a explorar: as novelitas de Aira são, sim, intempestivas e surpreendentes, mas raramente incorporam a figura de um narrador-escritor que se identifica como César Aira (algo que Cumpleaños faz desde a primeira linha e, por isso, se transforma em um livro diferente, à parte, memorialístico e autobiográfico). Mais do que isso: o narrador de Cumpleaños fala das novelitas que escreve e publica, fala da posição que elas ocupam no seu "imaginário" de uma forma geral (como são tentativas de, simultaneamente, escapar do sistema literário e se juntar a ele - seguindo, nisso, os passos de Lamborghini (é o próprio narrador quem o declara).

domingo, 10 de março de 2024

Pare, olhe, escute



Onetti inicia seu romance Deixemos falar o vento, de 1979, com uma epígrafe de Pound (Do not move / Let the wind speak / That is paradise), que é precisamente a fonte de seu título, e com a seguinte frase inicial:

O velho já estava podre e me parecia estranho que só eu sentisse seu agridoce, tênue cheiro; que nem a filha nem o genro fizessem algum comentário. (trad. Maria de Lourdes Martini, Francisco Alves, 1981, p. 11)

Como de hábito, Onetti apela aos sentidos, mais do que ao raciocínio ou à lógica - em geral, esse é o campo de atuação de seus narradores e personagens: aquilo que ataca o corpo de imediato, os cheiros, as visões, aquilo que é percebido pelos sentidos (a "fala" do vento, desde o título-epígrafe).

*

Na edição de dezembro de 1979 da revista Poetry, Charles Simic publica o poema "Furniture Mover". Esse homem, encarregado de movimentar os móveis (de levar algo do ponto A ao ponto B, deslocando, mostrando as marcas deixadas por um hábito, como faz também a poesia), também sente o mundo no próprio corpo e, através de seus sentidos, reivindica uma experiência:

uma carga enorme
nas suas costas
e sob seu braço
assim
sempre

tudo em seu lugar
perfeito
exatamente como era
doce lar