domingo, 14 de maio de 2017

Surrealismo, romance

Um dia, descobri os romances de Ernesto Sabato; em Abaddón, el exterminador (1974), transbordando de reflexão como outrora os romances dos dois grandes vienenses [Broch e Musil], ele diz textualmente: no mundo moderno, abandonado pela filosofia, fracionado por centenas de especializações científicas, o romance nos resta como o último observatório do qual se pode abraçar a vida humana como um todo.
Meio século antes dele, do outro lado do planeta (a ponte prateada não parava de vibrar acima da minha cabeça), o Broch de Sonâmbulos, o Musil de O homem sem qualidades, pensaram a mesma coisa. Na época em que os surrealistas elevavam a poesia à categoria de a primeira das artes, eles concediam esse lugar supremo ao romance.

(Milan Kundera, A cortina. trad. Teresa Bulhões. Cia das Letras, 2006, p. 80).

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O erro do surrealismo consistiu em crer que basta a revolta e a destruição, basta a liberdade total. Não, não basta a liberdade. Porque uma vez com a liberdade em nossas mãos, temos que saber o que fazer com nossa liberdade. Enquanto só se tem que destruir, tudo corre muito bem e inclusive experimentamos uma certa alegria. Por isso, o fim lógico de um surrealista consequente é o suicídio ou o manicômio, e nisso devemos render homenagem aos homens que, como Nerval ou Artaud, foram consequentes até o fim. Mas nem a loucura nem o suicídio podem ser uma solução genuína para o homem. É aqui, neste momento, que nos afastamos do surrealismo.

(Ernesto Sabato, Homens e engrenagens: reflexões sobre o dinheiro, a razão e a derrocada de nosso tempo (1951). trad. Janer Cristaldo, Papirus, 1993, p. 122). 


Poema épico e drama são, segundo sua essência, anti-individualistas ou, no melhor dos casos, a-individualistas. Apenas com o romance - a novela italiana ainda era em boa parte pré-individualista -, apenas com Cervantes é que a totalidade do indivíduo, quase se poderia dizer até sua totalidade lírica, chegou a uma compreensão total, ilimitada, tanto interna quanto externamente, adequada tanto psicológica quanto socialmente. A forma do romance estava igualmente preparada para ser a arte adequada ao século XIX e se desenvolver em seu naturalismo individualista à mais alta florescência.

(Hermann Broch, "A arte e seu des-estilo no final do século XIX", Espírito e espírito de época. trad. Marcelo Backes, Benvirá, 2014, p. 133).

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