terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Giotto e Boccaccio

Giotto fixou o instante fecundo desse reencontro [entre São Joaquim e Sant'Ana] como uma testemunha presente em espírito. Seu casal eleito não se saúda em um mundo vazio de homens: seis testemunhas circundam a cena principal e a retêm, como uma imagem interna, com seus olhos profanos. Não é apenas o observador que percebe o que o pintor quer dar a entender, a própria imagem está cheia de olhos que assistem ao acontecimento representado e o colocam em um espaço público imanente à imagem.
Por isso, o pintor Giotto já é mais novelista que contador de legendas; sua História Sagrada está mais próxima de um jornal da Terra Santa que de uma leitura monástica. Suas cenas não se desenrolam sob os olhos de teólogos dos mistérios e de eremitas, mas diante de uma sociedade urbana e cortês que quase não distingue mais entre história sagrada e secular na escolha de seus assuntos de conversação. A novela, como a sociedade dos tempos modernos, vive do que é interessante. Assim, aquilo que os observadores percebem diante do quadro também é visto pelos circundantes em seu interior. 
Quarenta anos antes de Boccaccio, Giotto redescobriu os "direitos humanos" do olho a ver imagens divertidas; no espírito da novela se anuncia a moderna repartição social do conhecimento de fatos que estimulam nossa inteligência afetiva e participativa. Os afrescos põem em ação uma vivacidade narrativa que ultrapassa o horizonte de suas fontes escritas, em particular da simplista literatura legendária, e dirige-se para o movimentado mundo do início dos tempos modernos. Poder-se-ia arriscar a afirmação de que Giotto já teria colocado o princípio de divertir o olho acima da lei da contemplação religiosa. Isto se mostra de modo particularmente notável no ponto mais candente do quadro da saudação. De fato, ali onde os rostos dos santos esposos entram em contato, o pintor, por um artifício óptico, faz aparecer um terceiro rosto. Para percebê-lo, deve-se desviar o olhar das duas figuras principais e dirigi-lo, em observação descentrada, para o campo em meio aos dois rostos. Aqui, e aqui apenas, é verdadeiro o dito de Lévinas: encontrar um ser humano significa manter-se desperto por um enigma. 
(Peter Sloterdijk, Esferas I: bolhas, trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 135-136)

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Somente o seu Decameron fixa, pela primeira vez após a Antiguidade, um certo nível estilístico, dentro do qual a narração de acontecimentos reais da vida presente se pode converter numa diversão culta; não mais serve como exemplo moral, e também não mais serve à despretensiosa vontade de rir do povo, mas ao divertimento de um círculo de pessoas jovens, distintas, e cultas, damas e cavaleiros que se deleitam com o jogo sensível da vida, e que possuem sensibilidade, gosto e opinião refinados (Erich Auerbach, Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Vários tradutores, Perspectiva, 2009, p. 188).

Suas características mais evidentes, quando o comparamos com narrações mais antigas, são a segurança com que os fatos multipartidos são por ele dominados, tanto na sua visão, quanto na articulação sintática, e a flexibilidade com que adapta o nível do tom e o tempo da narrativa aos movimentos internos e externos dos acontecimentos (p. 190-191).

Sem Dante, tal riqueza de tonalidades e de perspectivas dificilmente teria sido possível. Mas da visão figural-cristã, que preenchia a imitação dantesca do mundo terreno e humano e lhe conferia a sua força e profundidade, nada mais aparece no livro de Boccaccio. As suas personagens vivem sobre a Terra, e só sobre a Terra; vê a abundância de aparições, de maneira imediata como um rico mundo de formas terrenas. E tinha direito a fazê-lo, pois não tinha de escrever nenhuma obra grande, grave e sublime; com muito mais direito do que Dante, chama o estilo do seu livro umilissimo e rimesso (introdução ao quarto dia), pois escreve realmente para diversão dos incultos, para consolo e divertimento das nobilissime donne que não vão a Atenas, Roma ou Bolonha para estudar. Com muito humor e graça se defende, no seu posfácio, contra aqueles que dizem que fica mal um homem grave e série escrever um livro com tantas piadas e gracejos (p. 195). 

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