quarta-feira, 15 de junho de 2016

História policial

1) História policial, de Imre Kertész, foi finalizado em 1975 e publicado na Hungria em 1977, sob o regime totalitário comunista. Por conta disso, a trama - a confissão de um ex-torturador, agora preso, que revisita sua "carreira" a partir de sua cela e com o auxílio dos diários de uma de duas vítimas - foi transferida da Hungria para um país sem nome da América Latina. Nesse momento, vale lembrar a célebre frase de Roberto Bolaño sobre a América Latina, espelho viciado da Europa:
Latinoamérica fue el manicomio de Europa así como Estados Unidos fue su fábrica. La fábrica está ahora en poder de los capataces y locos huidos son su mano de obra. El manicomio, desde hace más de sesenta años, se está quemando en su propio aceite, en su propia grasa. (El gaucho insufrible, p. 168).
2) Há muito a ser dito sobre o tema dos relatos nas celas de prisão, retrospectivas de vida sob o signo da morte (Sócrates no Fédon, Casanova, Dostoiévski no instante de sua morte), sobre a natureza de ficção radical do totalitarismo, que Kertész tão bem capta com suas narrativas em abismo, seus jogos de espelhos, seus personagens de identidades postiças (e "postiço" aqui serve para relembrar aquela célebre barba postiça de um dos relatos de Danilo Kis), conjunto de procedimentos que ecoa na América Latina em Ricardo Piglia, em seu Respiração artificial.
3) No capítulo de Borges oral dedicado ao conto policial, Borges fala que nosso mundo é caótico, sem regras, e que um dos poucos redutos da ordem é precisamente o conto policial: ele ainda precisa do começo, do meio e do fim e, com isso, nos assegura, nos tranquiliza. Antonio Martens, o policial de Kertész, o detetive que confessa em História policial (ainda resta investigar a ambivalência dos termos, detetive, policial, que deslizam, oscilam um em direção ao outro - o original de Kertész chama-se Detektívtörténet), vive o caos da burocracia totalitária, sua perspectiva é interna (exatamente como faz Patrick Modiano em Ronda da noite). O que organiza o caos é o relato, a confissão, é justamente a História policial, e aí vemos a precisão do título - Martens conta sua história com início, meio e fim, e com direito a uma revelação final, que (esse é o traço genial da novelinha de Kertész) não apenas não corrobora tudo que vinha sendo construído até então como implode a lógica totalitária, seu arremedo de eficácia, arremessando tudo, mais uma vez, ao caos.  

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