quarta-feira, 30 de março de 2016

Poloneses, 3

1) Existe uma expressão comum a Sebald, que escreveu sobre Conrad, e Caillois, que escreveu sobre Potocki: os dois personagens estiveram "nas regiões mais remotas do globo" (Caillois ainda precisa: "de Marrocos até os confins da Mongólia"). Caillois data de 1812 o retiro final de Potocki, "neurastênico", "acometido por frequentes depressões nervosas". "Nesses acessos de melancolia", escreve Caillois, "passa o tempo limando a bola de prata que há na tampa do seu bule de chá". São três anos de atividade, até que em 20 de novembro de 1815 a bola de prata chega à dimensão desejada e Potocki "a enfia no cano de sua pistola e estoura os miolos" (p. 19).
2) Sebald comenta um caso amoroso de Conrad/Konrad/Korzeniowski, uma "história de amor" que "em alguns aspectos beira o fantástico", que alcançou seu "ponto culminante" em fevereiro de 1877, "quando Korzeniowski atirou em si mesmo no peito ou recebeu um tiro no peito disparada por um rival". Até hoje não está claro, continua Sebald, "se o ferimento resultou de um duelo, como Korzeniowski afirmou mais tarde, ou, como suspeitava tio Tadeusz, de uma tentativa de suicídio" (Os anéis de Saturno, p. 118).
3) Sebald comenta que tal "gesto dramático" condiz com um jovem que se declara "stendhaliano", o que permite lembrar que Potocki cometeu suicídio pouco mais de cinco meses depois da decisiva batalha de Waterloo (18 de junho de 1815), que decidiu o encarceramento de Napoleão por parte dos britânicos (como Roger Casement; ou, para lembrar Borges em sua autobiografia: "sempre penso em Waterloo como uma vitória"). A lembrança é decisiva já que algumas páginas adiante em seu relato, o narrador de Sebald vai à Bélgica e visita o memorial de Waterloo - "o auge da feiura belga é para mim o Monumento do Leão e todo o chamado memorial histórico da batalha de Waterloo" (p. 128). 
Pouco mais adiante, escreve: "Perto de Brighton, assim me contaram, perto da costa, há dois pequenos bosques plantados após a Batalha de Waterloo, em lembrança daquela memorável vitória. Um deles tem a forma de um tricorne napoleônico, o outro o da bota de Wellington. Os contornos, é claro, não podem ser reconhecidos do chão. Ou seja, as imagens foram concebidas para balonistas futuros" (p. 130). Como não lembrar do passeio de Potocki pelos arredores de Varsóvia no balão de Blanchard, acompanhado de seu criado turco e seu poodle, em 1788? (ou do passeio de balão de Robert Walser, ou o voo pioneiro de Nadar, e assim por diante).

sábado, 26 de março de 2016

Poloneses, 2

Jan Potocki
Poloneses e suas partidas, seus deslocamentos (um dos livros de cabeceira de Montaigne foi História dos reis e príncipes da Polônia, de Herburt de Fulstin). Roger Caillois, no prefácio da edição francesa de 1958 do Manuscrito encontrado em Saragoça (reformulado e expandido em 1966), comenta vida e obra do autor, Jean/Jan Potocki (1761-1815), e sua "reputação singular de ser um excêntrico e um erudito". O Manuscrito foi escrito em francês, nos informa Caillois, como tudo que escreveu Potocki, membro de "ilustre família polonesa". Em julho de 1788, Potocki voa de balão com o aeronauta francês Blanchard. "A Europa inteira vibra com estas primeiras tentativas de conquistar o céu", escreve Caillois, e continua: "Blanchard acrescentou à barquinha de seu aeróstato um velame móvel e uma hélice vertical. Potocki sobe nela juntamente com um criado turco que faz questão de acompanhá-lo e um poodle. O balão permanece no ar por aproximadamente uma hora, depois aterrissa em Wola, não longe de Varsóvia. Uns cavalheiros vieram buscar os aeronautas para escoltá-los em triunfo de volta à capital. O rei mandou cunhar na Casa da Moeda uma medalha comemorativa. Potocki é o herói do dia". Para o Manuscrito, Potocki parte de Boccaccio (a divisão das histórias em jornadas), recorrendo a elementos do romance gótico, do orientalismo de William Beckford e à "magia de Cazotte". Caillois defende que "sob a máscara da ficção, Potocki esboça na realidade um curso de história comparada das religiões" (lembrando que Caillois publica O homem e o sagrado em 1939), e completa: "Potocki não renegou seus mestres. Ele é seguramente Enciclopedista, mas é antes de tudo enciclopédico" (Manuscrito encontrado em Saragoça. Trad. Lília Ledon da Silva. Brasiliense, 1988, p. 35 - a tradução mais recente do Manuscrito de Potocki ao espanhol foi feita por César Aira).

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Poloneses e suas partidas, seus deslocamentos - esse é o cerne de Badenheim 1939, a novela que Aharon Appelfeld publica em 1978. A cidade do título é uma pequena cidade no interior da Áustria que vive da alta temporada de veraneio e dos gastos dos turistas. De repente, o "Departamento Sanitário" começa a se anunciar cada vez mais presente na vida dos habitantes, até o aviso de que todos os habitantes judeus deveriam passar em seus escritórios para cadastro. É então que surge a "Polônia", que sabemos ser a Polônia ocupada pelos nazistas, a Polônia dos campos, anunciada pelo Departamento como futuro ponto de realocação desses habitantes. Appelfeld vai pouco a pouco desenvolvendo a trama a partir da incredulidade, da confiança desses habitantes de Badenheim na profundidade de sua assimilação à identidade austríaca - a visita do Departamento "transtornou Martin", um dos personagens, escreve Appelfeld, "ele acreditava nas autoridades e, por isso, culpava-se a si mesmo". A novela termina antes da chegada à Polônia, a Polônia nunca está de fato presente, ela paira e oscila entre essas fantasias - as promessas do Departamento, a negação dos que acreditam na assimilação ("Eu sou, como você, austríaco. Meus antepassados? Não sei. Talvez, quem sabe? O que importa quem foram meus antepassados?"), a celebração daqueles que ainda lembram da Polônia, que celebram o retorno, que retomam a língua, que falam da música na Polônia, tão superior, até o abandono coletivo ao final ("Os campos verdes e úmidos espalhavam-se ao redor. Uma delicada cerração matutina subia lânguida nos ares. Como era fácil a transição, eles mal a sentiam. O dono do hotel empurrava a cadeira de rodas do rabino como se tivesse nascido para essa tarefa").

(Aharon Appelfeld. Badenheim 1939 / Tzili: novelas. trad. Rifka Berezin e Nora Rosenfeld. São Paulo: Summus, 1986 - Philip Roth fala de Badenheim 1939 nos seguintes termos: "pede-se ao leitor - de modo enfático, ao meu ver - que veja a transformação de uma agradável estação de águas austríaca frequentada por judeus no sinistro palco da 'relocalização' dos judeus para a Polônia como um processo de algum modo análogo aos eventos que precedem o Holocausto de Hitler", Entre nós, trad. Paulo Henriques Britto, Cia das Letras, 2008, p. 37).

sexta-feira, 25 de março de 2016

Poloneses, 1

Joseph Conrad, 1874
Mais um quarto de hotel. Sebald pega no sono na poltrona de veludo verde que arrasta até a frente da televisão. Tentou assistir um documentário da BBC sobre Roger Casement; adormeceu. Estamos na quinta seção de Os anéis de Saturno e Sebald, fazendo uso de "fontes" jamais reveladas, tenta reconstruir aquilo que imagina ser o conteúdo do documentário. Antes de Casement, porém, Sebald trata de Conrad; Konrad, o polonês, aos doze anos, liderando o cortejo para o pai morto, "como principal figura enlutada". Foi nessa ocasião, escreve Sebald, que Konrad decide se tornar "capitão". Quatro anos depois, em 1874, ele se despede da avó e do tio na estação de Cracóvia, "e dezesseis anos se passarão antes que retorne para visitar sua terra natal, ainda sob jugo estrangeiro", escreve Sebald (trad. José Marcos Macedo, Cia das Letras, 2010, p. 115).