quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Markson, memórias de um cego

1) Nas últimas páginas de Wittgenstein's Mistress a narradora de David Markson chega à conclusão que está escrevendo uma autobiografia. A questão do nome (da identidade, da presença) é fundamental na obra de Markson, e o tema da autobiografia chega ao final de WM logo depois da narradora contar como Martin Heidegger a ajudou a dar nome ao seu gato - Heidegger teria respondido a uma carta sua, sugerindo que seu gato fosse batizado com o nome de um cão, Argos, o cão de Ulisses, o cão da Odisseia
2) São inúmeros os gestos de esvaziamento das identidades operados por Markson em WM (a repetição dos nomes, à semelhança de Thomas Bernhard, mas também a sutil e progressiva camada de equivocidade que Markson vai dando aos nomes - Rainer Maria Raskolnikov, Jacques Barthes...). Atribuições errôneas também são frequentes - a frase de Nietzsche atribuída a Pascal, a música de Villa-Lobos atribuída a Brahms, etc. A narradora opera dois gestos fundamentais: toda vez que encontra um espelho, assina sua imagem; na praia, usando um bastão, escreve na areia um nome que não é o seu ("Helena") em um idioma que não conhece (o grego). O autorretrato da última pessoa sobre a Terra é seu reflexo irrepetível, irrecuperável, como o cão das três e quatorze (visto de perfil) de Funes, o Memorioso.
3) A narradora assina seu nome no reflexo do espelho, espécie de suma simbólica da instabilidade da identidade ("não me reconheço no espelho", etc). Qualquer reflexo será, daí por diante, o autorretrato da narradora que assina (um autorretrato que é vazio por definição, mas que ganha em __________ na medida em que não há ninguém mais no mundo, ela está sozinha, a humanidade desapareceu). Já em Vanishing Point, mais adiante, Markson vai retomar essa ideia de Paul de Man - a autobiografia como de-facement, como busca interminável de um semblante vazio, sempre em processo. Ou, no idioma de Jacques Derrida, todo autorretrato é sempre uma ruína, já em pedaços quando se parte em direção a, são sempre "as memórias de um cego", de alguém que mesmo vendo não vê que já não há mais nada para ver (para falar com Markson, o autorretrato é sempre essa assinatura sem objeto, reflexo do reflexo).   

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