segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Jacob Riis


No ano em que morre Edgar Allan Poe, 1849, nasce o fotógrafo e escritor Jacob Riis, na Dinamarca. Riis morre em 1914, em Barre, Massachusetts, a menos de 100 quilômetros de Boston, onde morreu Poe. Riis não era ficcionista, mas de certa forma deu continuidade ao olhar e contato de Poe com a multidão e seus personagens que tendem a permanecer negados pela sociedade e seus discursos (não surpreende, portanto, que Riis tenha aperfeiçoado seu inglês lendo Dickens). Riis foi o primeiro a fotografar, em fins do século XIX, os cortiços e becos fétidos destinados aos imigrantes no sul de Manhattan:
Riis chegou aos Estados Unidos em 1870. Trabalhou como carpinteiro e vendedor, foi roubado e logrado incontáveis vezes. Chega aos poucos no jornalismo e em 1887 descobre uma invenção recente: o flash fotográfico, que o permite registrar o que vê em suas rondas pelas partes miseráveis da cidade. Em 1888, Riis adquire seu conjunto fotográfico e começa a publicar artigos e ilustrações. No ano seguinte publica um artigo de dezoito páginas contendo dezenove de suas fotos, artigo que gera e dá título ao seu primeiro livro, de 1890, How the Other Half Lives
O fluxo de imigrantes, no entanto, ainda estava para alcançar sua maior intensidade. No período de 1895 a 1914 Nova York recebe milhões de pessoas, sobretudo do Leste Europeu (passando pela Ellis Island, como mostra o filme-livro-poema de Georges Perec). Famílias de alemães e irlandeses, estabelecidas há mais tempo, se deslocam mais para o norte da ilha, abrindo espaço para russos, poloneses, húngaros, a maioria deles judeus fugindo dos pogroms. São os personagens de Joseph Roth - como aqueles que os irmãos Coen colocam no prólogo de A Serious Man (2009) -, que inclusive enviou um deles à América em seu livro , de 1930 (como faz também Kafka em Amerika - em nota relacionada, os avós paternos de Philip Roth chegaram aos Estados Unidos nesse período de virada do século).
Um pouco posterior ao esforço de Riis, surge, em Londres, o livro de Jack London, The People of the Abyss. Escrito em 1902 e publicado em 1903, é um relato da experiência do escritor vivendo nos cortiços e becos fétidos do East End de Londres. O livro pioneiro de London será leitura de cabeceira de George Orwell, que na década de 1930, afinado com seu contemporâneo Joseph Roth, que não conhecia, também vai falar de beberrões, mendigos e imigrantes. A miséria e desigualdade da virada do século vão se ampliar em direção à década de 1930 (com Orwell mas também com Faulkner e com a excursão de James Agee e Walker Evans em 1936, Let Us Now Praise Famous Men), à década de 1940 e assim por diante (o neorrealismo, os filmes de Rossellini, os filmes de Lionel Rogosin, os livros de William T. Vollmann).   

sábado, 26 de dezembro de 2015

Portas abertas, 4

1) Um tema forte em Sciascia: a relatividade das leis, dos sentimentos, das pessoas. Aquilo que é legítimo e sagrado para alguns será abjeto e criminoso para outros (a Inquisição, o fascismo). Na novela Majorana desapareceu, de 1975, Sciascia mais uma vez usa um caso real, documentado pela imprensa, para investigar esse tema da variabilidade das certezas humanas. Nunca se descobre a razão do desaparecimento de Majorana - que teria fabricado o próprio suicídio -, mas Sciascia especula que pode ter alguma relação com seu trabalho como físico e matemático e a precoce consciência que Majorana teria da possibilidade de construção da bomba atômica.
2) O percurso especulativo que Sciascia realiza para tentar explicar, sutilmente, o desaparecimento de Majorana segue os extremos típicos dessa relatividade: da consciência da destruição mais completa e atroz em direção ao silêncio mais radical; do estudo das consequências mais amplas em direção ao recolhimento mais íntimo. O físico Majorana pode ter se transformado em monge, recluso em um convento:
Empreendemos esta viagem, entramos nesta cidadela dos cartuxos, correndo atrás de um sutil, atormentador rastro de Ettore Majorana. Uma vez, em Palermo, estávamos falando do seu misterioso desaparecimento com Vittorio Nisticò, diretor do jornal L'ora. De repente, Nisticò lembrou-se claramente de uma coisa: muito jovem, nos anos da guerra ou do imediato pós-guerra, em suma, por volta de 1945, visitara em companhia de uma amigo um convento de cartuxos. e a certa altura da visita foram confidencialmente informados por um dos "irmãos" de que entre os "padres", no convento, havia um grande cientista. (Sciascia, Majorana desapareceu, trad. Mário Fondelli, Rocco, 1991, p. 74-75).
3) Majorana foi contemporâneo de Wittgenstein ou, mais precisamente, foi contemporâneo do segundo Wittgenstein, aquele que retorna à filosofia em fins da década de 1920 depois de alguns anos como professor de crianças no interior da Áustria. Majorana desaparece em 1938, ano em que Wittgenstein torna-se cidadão inglês por conta das leis raciais de Hitler. Como leitor, Wittgenstein às vezes se dividia entre Tolstói (o que nos leva diretamente à articulação entre santidade e mundanidade) e livros de detetives, pulp fiction como aquela de Norbert Davis (o que nos leva ao tipo de relato que interessava ao próprio Sciascia). Pois é o próprio Wittgenstein quem vai reunir a Inquisição, o fascismo e as novas formas de destruição em massa em um único comentário, reunido, junto com tantos outros, por seus alunos e seguidores em uma publicação póstuma:
Pense um pouco no que deve significar o fato de o governo de um país ser controlado por um bando de gangsters [Wittgenstein está falando de Hitler e da Alemanha]. A época das trevas está retornando. Não me surpreenderia, Drury, se você e eu tivéssemos de viver para assistir horrores como aqueles que consistem em queimar vivas pessoas consideradas feiticeiras. (Recollections of Wittgenstein, Org. R. Rhees, Oxford, 1984, p. 152 - citado em Christiane Chauviré, Wittgenstein, trad. Maria Luiza Borges, Zahar, 1991, p. 148).

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Portas abertas, 3

1) Em Portas abertas, Sciascia apresenta uma sala de tribunal da década de 1930 que ainda carrega, por baixo das pinturas das paredes, as mensagens dos condenados pela Inquisição. Sem necessariamente colocar em questão a "tragédia" ou a "farsa" (não me parece importar a Sciascia tal categorização, tendo em vista o fascismo e a Inquisição), essa imagem do palimpsesto em Sciascia lembra a abertura do 18 de brumário de Marx:
Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. (Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, trad. Nélio Schneider, Boitempo, 2011, p. 25).
E linhas depois Marx fala dos "espíritos do passado" que emprestam seus nomes aos revolucionários, fala das "ressurreições de mortos" protagonizadas pelas revoluções, fala do "fantasma da antiga revolução" e da "máscara mortuária de Napoleão". O próprio Napoleão já havia surgido no relato de Sciascia - quando o juiz fala de sua percepção anedótica da história - e é precisamente na continuação desse diálogo que um dos procuradores fala ao juiz, já muito tempo depois do caso encerrado:
Dentro de alguns meses vou-me embora; deixo este escritório, esta profissão. Mas estou me acostumando: estou começando a pensar coisas nas quais nunca pensei antes. Por exemplo: que sempre fui um morto que sepultava outros mortos. E aliás: todos nós somos, neste nosso ofício de acusar e julgar. E mais: me pergunto se, na função de mortos que sepultam mortos, temos realmente o direito de sepultar mortos por pena capital. (Sciascia, Portas abertas, trad. Mário Fondelli, Rocco, p. 83).
(Nesse ponto específico tratado por Sciascia - a questão da pena capital -, vale mencionar que em um de seus últimos seminários, Jacques Derrida estava se ocupando desse debate e usando como referência de trabalho aquele mesmo autor-base de Sciascia, Montaigne (é possível relembrar também a discussão de Derrida a respeito da pena capital contra Blanchot, o "instante de sua morte")).
2) Essa articulação entre a literatura e a "ressurreição dos mortos" leva em direção a outro livro escrito sob o signo napoleônico, O coronel Chabert, de Balzac. Apesar de vivo, já em sua primeira aparição surge "a sensação desbotada dessa fisionomia cadavérica", como escreve Balzac. O próprio Chabert exclama, ironicamente:
Estive enterrado sob os mortos, mas agora estou enterrado sob os vivos, sob certidões, sob fatos, sob a sociedade inteira, que quer me fazer voltar para debaixo da terra! (Balzac, O coronel Chabert, trad. Eduardo Brandão, Cia das Letras, 2012, p. 28).
3) São três elementos que ligam a novela de Sciascia, Portas abertas, à novela de Balzac, O coronel Chabert: em primeiro lugar, a escrita infame da Inquisição que brota das paredes da "casa da Justiça"; em segundo lugar, Napoleão como exemplo da história anedótica e menor; em terceiro, o trabalho do advogado ligado à morte, à manutenção daquilo que deve ser limpo e mantido distante da sociedade (uma espécie de sobrevivência do antigo mito dos "devoradores de pecados"). O advogado que tentou garantir os direitos de Chabert reflete de forma semelhante àquele advogado de Sciascia, já na última página da novela de Balzac, muitos anos depois:
Sabe, meu caro, que em nossa sociedade existem três homens, o padre, o médico e o homem de lei, que não podem ter estima pelo mundo? Eles usam trajes negros, talvez por guardarem o luto de todas as virtudes, de todas as ilusões. (O coronel Chabert, p. 82).
Poucas linhas adiante ele completa: "nossos escritórios são esgotos que não se podem limpar". Talvez isso possa aprofundar a visão do leitor em direção ao universo de Sciascia, tão ligado à lei, ao processo e à justiça dúbia, sempre maleável, suscetível aos desvios da história. Para Sciascia, no entanto, ao contrário de Balzac, não são o padre, o médico e o homem de lei que guardam o luto "de todas as ilusões" - talvez o filósofo, talvez o romancista.  

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Portas abertas, 2

1) Portas abertas, a novela que Sciascia publica em 1987, faz uma espécie de contraponto em direção a A bruxa e o capitão, que Sciascia publica no ano anterior, 1986. Na nota que encerra este último livro, Sciascia escreve que seus temas foram "a injustiça, a intolerância, o fanatismo", que em A bruxa e o capitão se revelam por meio da Inquisição (e do processo factual contra Caterina Medici, uma empregada de casa do século XVII) e em Portas abertas por meio do fascismo de Mussolini (e da tentativa de resgate da pena de morte na Palermo da década de 1930). Duas pontas distantes da história italiana, portanto, se unem ao compartilhar esse tema triplo, "injustiça, intolerância, fanatismo".
2) Em Portas abertas, já no fim do relato e do processo, Sciascia escreve que acusado, jurados e juiz "estavam agora na câmara do conselho, que como local não era menos desagradável do que a sala das sessões. Das paredes que haviam sido caiadas antes que as repartições judiciárias para lá se transferissem, por baixo do véu de cal transpareciam, ou apareciam claramente nas rachaduras, os desenhos e as escritas que os prisioneiros da Inquisição ali tinham deixado ao longo de dois séculos" (Sciascia, Portas abertas, trad. Mário Fondelli, Rocco, 1990, p. 70). A história é um pentimento que a "aguarrás do tempo" vai aos poucos revelando.
3) Na "nota" que encerra A bruxa e o capitão, Sciascia dá o nome do principal responsável por seu esforço continuado de denúncia da injustiça, intolerância e fanatismo em variados tempos e espaços: Montaigne (que aparece não apenas em A bruxa e o capitão, mas em uma série de outros ensaios e novelas de Sciascia). ""Nada faço sem alegria", dizia Montaigne: e os seus Essais são o livro mais feliz jamais foi escrito", escreve Sciascia em A bruxa e o capitão. E em Portas abertas, Sciascia incorpora a célebre frase do ensaio sobre o coxos - Apres tout, c’est mettre ses conjectures à bien haut pris que d’en faire cuire un homme tout vif - no contexto da pena de morte na Itália fascista: ""Afinal de contas, significa atribuir um peso e tanto às próprias opiniões, se por elas manda-se grelhar vivo um homem". Belas palavras: tudo não passa de opinião, merecedora de relativo e risível valor: menos aquela de não mandar grelhar vivo um homem somente porque não compartilha certas opiniões. E menos aquela, aqui, hoje, no ano de 1937 (no ano de 1987), de não permitir que a humanidade, o direito, a lei - e afinal o Estado que a filosofia idealista e a doutrina fascista então chamavam de ético - respondesse ao assassinato com o assassinato" (Portas abertas, p. 20).    

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Portas abertas, 1

"Napoleão emancipando os judeus", 1806
1) Ainda em Portas abertas, ainda na conversa entre o juiz e o jurado, o primeiro faz mais um comentário que pode ser lido como uma definição possível da poética de Sciascia (e também de Sebald ou Patrick Modiano): "Muitas vezes eu gosto de ver a história através de um detalhe, de algo que pode parecer insignificante, uma figura na sombra, uma anedota... Napoleão entra numa sinagoga, olha para os judeus que rezam de cócoras e diz: 'Senhores, com o traseiro ninguém jamais conseguiu fundar um Estado'; e lá vêm as bombas nos mercados de Tel Aviv, uma questão sem fim... Aquela apreensão por notícias que a guerra da Espanha relegava às margens o terrorismo dos judeus que queria fundar um Estado, a maneira com a qual os ingleses administravam o seu mandado na Palestina, parecia a Simone e ao juiz totalmente descabida e, ao torná-la assunto de conversa, um tanto obsessiva. Continuaram conversando, com leveza, com brilho, da França, de alguns escritores, de alguns livros. E do fascismo. Mas falando daquele jeito, o fascismo parecia uma coisa distante, como que sonhada num mapa imaginário da imbecilidade humana" (Portas abertas, p. 78-79, grifo meu). 
2) Sciascia aproxima a anedota de Napoleão na sinagoga (provavelmente nos primeiros anos do século XIX) das tentativas de fundação de um Estado com uso da força por volta de 1936, enxergando talvez uma correspondência, um eco (apenas insinuado, indefinido). Por um viés psicanalítico, essa é também a postura de Zizek: o chiste, a anedota, a piada são eventos de linguagem carregados de conteúdo recalcado, "detalhes insignificantes" que podem, no entanto, revelar refrações atípicas no percurso histórico. Em Menos que nada, Zizek escreve: "Todos conhecemos a piada sobre o enigma de quem teria escrito as peças de Shakespeare: 'Não William Shakespeare, mas alguém com o mesmo nome'. É isso que Lacan quer dizer com 'sujeito descentrado', é assim que o sujeito lida com o nome que fixa sua identidade simbólica: John Smith (sempre, por definição) não é John Smith, mas alguém com o mesmo nome. Como a Julieta de Shakespeare já sabia, nunca sou 'aquele nome' - o único John Smith que acredita ser realmente John Smith é o psicótico" (Zizek, Less than nothing, Verso, 2012, p. 422).       
3) Antonio Tabucchi articula a anedota e a perda do nome próprio em um personagem, Pereira, e seu livro, Afirma Pereira. Também Pereira vive o fascismo na década de 1930, como o juiz e o jurado de Sciascia em Portas abertas (e são tantos que vivem o fascismo nas páginas de Sciascia), e o romance de Tabucchi tenta dar conta justamente do percurso que leva Pereira de uma condição de "sujeito centrado" a uma condição de "sujeito descentrado". O desaparecimento de Pereira no final do romance, sua progressiva "formação política" diante do fascismo, se dá no momento em que se pode responder à pergunta Quem afirma? com a fórmula: Não Pereira, mas alguém com o mesmo nome. Sciascia também vai encontrar esse tema em seu livro O teatro da memória, sobre um caso italiano verídico de impostura/personificação/reivindicação de identidade.    

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Portas abertas

Se em 1912+1, em forma de digressão, Sciascia apresenta uma de suas predileções narrativas - personagens que dedicam a vida à investigação de outros personagens e temas que são seus opostos -, em Portas abertas, uma novelinha publicada em 1987 (um ano depois de 1912+1, portanto), surge um personagem, "um pequeno juiz", que lhe serve mais uma vez como veículo para predileções. "Deixou de lado a leitura do Giuffredi", escreve Sciascia sobre seu pequeno juiz, "para procurar um outro livro de que subitamente se lembrara: de Pittè, acerca do culto pelas almas dos corpos degolados. Tinha uma verdadeira paixão para desenrolar, entre os seus livros e no seu pensamento, o fio de extemporâneas curiosidades. Desde que começara a ter alguma coisa a ver com os livros: razão pela qual os irmãos, que ficavam em cima dos livros com mais vontade e aplicação, consideravam-no uma espécie de vadio. Ele sabia, contudo que só tinha tido a ganhar, naqueles momentos ou dias perdidos; e, de qualquer maneira, sempre haviam sido motivo de prazer" (Leonardo Sciascia, Portas abertas, trad. Mário Fondelli. Rocco, 1990, p. 51, grifo meu).
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Portas abertas tem como assunto um julgamento por assassinato que ocorre no período do fascismo. O "pequeno juiz" recebe de um dos jurados uma gravura e a partir dela vai às leituras mencionadas (Giuffredi, Pittè). No fim do livro, quando o veredito já foi dado, o juiz visita o jurado em sua casa no campo. Eles conversam sobre livros: "Era como se estivesse ansioso para falar de livros, de escritores: de tão raro que era encontrar alguém com quem pudesse fazê-lo. E depois de admirar as gravuras de Rosaspina, deixando o livro: - Muito bonito: não deve ter passado desapercebido de Stendhal, em seu amor pelo Correggio. - Não, não creio: e se por acaso ele tiver mencionado a coisa em alguma carta, em alguma anotação, o nosso Trompeo deve estar a par disto..." (Portas abertas, p. 76). O mesmo Trompeo que Sciascia também cita em 1912+1, também em referência a Stendhal - desenrolando "o fio de extemporâneas curiosidades".