sábado, 13 de junho de 2015

A perda de um dente

A morte é um dos grandes temas sobre os quais Montaigne medita e está sempre retomando. Não se pode ensaiar a morte, que só acontece uma vez, mas Montaigne aproveita toda experiência que possa dar-lhe uma ideia antecipada dela; por exemplo, uma queda de cavalo, seguida de um desmaio que lhe pareceu uma morte suave, tranquila. Aqui, a perda de um dente dá motivo para um pequena fábula sobre a morte.

Envelhecer apresenta pelo menos uma vantagem: não se morrerá de uma vez só, mas pouco a pouco, parte por parte. De modo que a "derradeira morte", como ele a chama, não deverá ser tão absoluta como se ocorresse durante a juventude e na flor da idade. O dente que cai - tormento banal, não catastrófico, que Montaigne deve ter conhecido ("Eis que um dente acaba de cair-me, sem dor, sem esforço; era o fim natural de seu tempo. É assim que me vou dissolvendo e escapando de mim") - torna-se um indício de envelhecimento e uma antecipação da morte. Ele o compara com outras falhas que estão afetando seu corpo, uma das quais, como dá a entender, atinge seu ardor viril. Montaigne, antes de Freud, associa o dente e o sexo como sinais de potência - ou de impotência, quando vem a faltar. 

"A morte mistura-se e confunde-se com tudo em nossa vida; o declínio adianta a hora dela e se intromete até mesmo no curso de nosso desenvolvimento. Tenho retratos de minha figura de vinte e cinco e de trinta e cinco anos; comparo-os com o de agora. Quantas vezes esse não é mais eu; quanto minha imagem atual está mais distante dessas do que da imagem de minha morte!" (III, 13 - Da experiência).

Montaige escuta a voz da razão: sua mente instrui sua imaginação. Possuímos fotos de nós nas diversas idades da vida; sabemos que não somos mais nós nessas imagens amareladas. Ele insiste na diferença que há entre mim agora e mim outrora. Isso não impede que algo em mim permaneça inteiro: "Esse não é mais eu", diz de um antigo retrato. Portanto, é porque permanece um eu, uma vida intacta, e é esse eu que desaparecerá. 

(Antoine Compagnon, Uma temporada com Montaigne. Trad. Rosemary Abilio. WMF Martins Fontes, 2015, p. 37-40).

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