sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Carta e exílio

Em Zoo, ou cartas não de amor, Chklóvski mescla o discurso do exílio ao discurso amoroso - diante da interdição da amada (você não pode me escrever sobre amor; você não pode me telefonar; você não pode me ver), diante da impossibilidade de dizer, Chklóvski arma um procedimento: enquanto comenta a Literatura, vai lançando, nas entrelinhas, considerações sobre duas ausências: a mulher e a Rússia (que terminam, evidentemente, também por se mesclar). Não poder falar de amor equivale, em Zoo, a não poder estar na Rússia (quando comenta o Dom Quixote, na Carta IV, Chklóvski fala que foi um romance feito na prisão, uma paródia que nasceu justamente da interdição, da impossibilidade de estar em casa e de estar de posse completa e legítima de um gênero). A carta funciona porque também ela equivale a essa ausência que é, ao mesmo tempo, respeitada e rejeitada - a carta diz respeito a alguém que não está, ela é feita no tempo e lida no contratempo, feita para o exílio, feita para estar alhures, o único lugar no qual ela faz sentido.
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Há um texto de Foucault sobre a questão da troca de cartas e a epistolografia como etapa na construção das comunidades em trânsito e no exílio: um de seus últimos seminários, O governo de si e dos outros, 1982-83, a respeito das cartas de Platão sobre a relação entre filosofia e política – algumas autênticas, outras de próximos de Platão, outras apócrifas. Foucault interroga um Platão de certa forma perdido no tempo e no espaço (como Chklóvski), a quem vai lançando perguntas sem esperar respostas (somente aquelas que consegue depreender das cartas, rastros, vestígios de respostas). Platão é apresentado por Foucault como um escritor viajante; suas cartas foram realizadas tentando dar conta tanto de sua vida como filósofo quanto de suas viagens, divididas em dois tipos, mas sempre didáticas: para encontrar discípulos e para encontrar governantes. Esse texto de Foucault oferece dois elementos: um discussão detida, com dados históricos, sobre o uso da carta como "amizade", "amor", filiação e comunidade, levando em consideração um contexto no qual os mitos tinham um peso social enorme; e a emergência da figura de um escritor de cartas que é também um viajante e que só escreve tais cartas porque viaja (O governo de si e dos outros, WMF Martins Fontes, tradução de Eduardo Brandão, 2013, p. 191-201).

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Cartas não de amor

1) Depois da Revolução, Chklóvski se exilou em Berlim - assim como Nabokov, mas ao contrário deste, que nunca mais voltou, Chklóvski pediu para voltar já na década de 1920. Nesse exílio, Chklóvski escreve Zoo, ou cartas não de amor, um romance epistolar baseado nas cartas que ele de fato escreveu a Elsa Triolet (que mais tarde foi para Paris e casou com Louis Aragon). As afinidades estabelecidas do passado se mesclam aos afetos imprevistos do presente - Moscou com Berlim, as releituras dos livros com a leitura das cartas de "Alya", que, ao proibir o narrador de lhe escrever sobre amor, faz com que ele elabore um procedimento de comentário crítico que possa, no mesmo gesto, esconder e revelar esse amor (e assim como o conto de Berlim, o romance de Chklóvski é também um guia da cidade, que o narrador percorre buscando - e não encontrando - a cidade natal e a mulher que ama).
2) Esse procedimento absorve a própria lógica da linguagem totalitária, que requer e requisita, por sua vez, uma espécie de leitura paranoica das entrelinhas. Ricardo Piglia, teimoso leitor dos formalistas, encena o mesmo impasse de Chklóvski e Alya em Respiração artificial - as cartas de Enrique Ossorio, que dizem aquilo que não podem dizer, sempre indiretamente, sempre na oscilação paranoica da leitura do censor, que faz das cartas uma sorte de Cabala do Estado, separando termos, confrontando, dissecando, traduzindo expressões de tempos e geografias inacessíveis (que se mesclam ao contexto do censor, assim como em Zoo, de Chklóvski).
3) Zoo permite a junção de dois campos de trabalho delineados por Roland Barthes: em primeiro lugar, a proposição da língua fascista, que não impede, e sim obriga a dizer; em segundo lugar, a retórica do discurso amoroso. Fragmentos de um discurso amoroso, de 1977, apresenta semelhanças estruturais com o romance epistolar de Chklóvski, semelhanças que podem ser resumidas a partir das palavras-chave que Barthes escolhe para definir seu projeto já na introdução: Figuras, Ordem e Referências, ou seja, imagens do passado (Figuras) postas em uma configuração artificial (Ordem) e revitalizadas a partir de um desvio, a partir de um procedimento de revelação/velamento (Referências). O esforço de Barthes é o de alcançar o "discurso amoroso" a partir da decantação do código que diferencia tal discurso (e nesse processo faz a decantação também de seu próprio instrumental crítico); o esforço de Chklóvski é o de alcançar uma espécie de ponto intermediário entre a autobiografia, o comentário e a denúncia política, tomando como ponto de partida uma interdição prévia do acesso ao "discurso amoroso".   

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Ensaio autobiográfico

Doca Norte, Buenos Aires, 1921
1) Meu pai era muito inteligente e, como todos os homens inteligentes, muito bondoso. Meu pai era um homem tão modesto que teria preferido ser invisível. Embora se orgulhasse de sua ascendência inglesa, costumava zombar dela.
2) Mudamos para Madri, e aí o grande acontecimento foi minha amizade com Rafael Cansinos-Asséns. Ainda gosto de pensar em mim como seu discípulo. Conheci-o por intermédio de alguns amigos da Andaluzia.
3) Talvez o maior acontecimento de minha volta tenha sido Macedonio Fernández. Era uma figura pequena de chapéu-coco, esperando por nós na Dársena Norte quando desembarcamos, e acabei herdando de meu pai sua amizade. Os dois haviam nascido em 1874.
4) Esses anos foram muito felizes porque significaram muitas amizades: Norah Lange, Macedonio, Piñero, meu pai... A sinceridade animava nosso trabalho, e sentíamos que estávamos renovando a prosa e a poesia. Naturalmente, como todos os jovens, eu procurava ser o mais infeliz possível, uma espécie de mistura de Hamlet e Raskolnikov. O que conseguimos foi bastante ruim, mas nossa camaradagem perdurou.
5) Para resumir esse período de minha vida, sinto-me em total desacordo com o jovem pedante e um tanto dogmático que fui. Os amigos, porém, estão ainda muito presentes e muito próximos. Na verdade, são uma parte indispensável de minha vida. Penso que a amizade é a única paixão que redime os argentinos.
6) Um dos principais acontecimentos desses anos (e de minha vida) foi o início de minha amizade com Adolfo Bioy Casares. Muitas vezes me perguntaram como se faz para escrever em colaboração. Penso que exige o abandono conjunto do ego, da vaidade e talvez da cortesia. Quanto às Crónicas de Bustos Domecq, penso que são melhores que tudo o que publiquei em meu nome e quase tão boas quanto qualquer coisa escrita individualmente por Bioy.
7) Em Cambridge, os amigos pareciam multiplicar-se: Jorge Guillén, John Murchison, Juan Marichal, Raimundo Lida, Héctor Ingrao e um matemático persa, Farid Hushfar, que desenvolvera uma teoria do tempo esférico, a qual não entendo muito bem mas espero algum dia plagiar.
8) Tenho outro projeto pendente há muito mais tempo: o de revisar e talvez reescrever o romance de meu pai, El caudillo, como ele me pediu anos atrás. Chegamos até a discutir vários dos problemas; gosto de pensar nessa tarefa como um diálogo ininterrupto e como uma colaboração bastante real.
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Jorge Luis Borges. Ensaio autobiográfico. tradução de Maria Carolina de Araujo e Jorge Schwartz. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 13, 33, 41, 51, 53, 64, 77.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Navios, viajantes

É impossível pensar em Joseph Conrad sem pensar no mar, nas embarcações e suas viagens - seu ambiente por excelência. Jean Echenoz foi muito habilidoso, em Ravel, ao fazer seu protagonista ler justamente um romance de Conrad enquanto atravessava o oceano de navio - assim como fez Thomas Mann em 1934 com o Dom Quixote. Penso também em outro polonês - a viagem de Gombrowicz à Argentina em 1939, a bordo do Chrobry, experiência que está em seu romance de 1953, Trans-Atlantyk. E Roger Caillois, que faz no mesmo ano o mesmo trajeto, mas partindo de Cherbourg. Um pouco antes, em 1918, Marcel Duchamp também pegava um navio em direção a Buenos Aires, o Crofton Hall. Borges, que nessa época morava em Genebra, escreve o seguinte em seu Ensaio autobiográfico: "Em consequência da guerra, não fizemos outras viagens, exceto aquela à Itália e excursões dentro da Suíça. Em pouco tempo, desafiando os submarinos alemães e em companhia de apenas quatro ou cinco passageiros, minha avó inglesa juntou-se a nós".  

domingo, 16 de novembro de 2014

O escritor e o comunismo

O caso de Malraux é um teste da percepção de um crítico das tentações que o totalitarismo oferece ao gênio poético. Embora Malraux tenha lutado, sucessivamente aliado à esquerda e à direita, passando da Brigada Internacional para o gabinete de De Gaulle, nunca adotou um programa político consistente. Fosse qual fosse o campo a que aderisse, sempre seguiu o que existe na política de heroísmo, violência e lealdade de conjurados. Em suma, suas crenças políticas são estéticas; é a estrutura formal da ação política que atrai Malraux, não o conteúdo. A chave de toda a carreira de Malraux pode ser encontrada na observação feita por Walter Benjamin no sentido de que aqueles que fazem da política uma arte refinada sempre terminarão numa postura elitista ou totalitária - de esquerda ou de direita. 

Ou então vejamos o caso de Orwell. 1984 não é uma parábola sobre o regime totalitário de Stálin, Hitler e Mao Tse-Tung. A polêmica da fábula não é unilinear. A crítica de Orwell tem a ver ao mesmo tempo com o Estado autoritário e com a sociedade capitalista de consumo, com sua ignorância de valores e suas conformidades. "Newspeak", a linguagem do pesadelo de Orwell, é tanto o jargão do materialismo dialético como a verborragia da propaganda comercial e dos mass media. A força trágica de 1984 decorre precisamente da recusa de Orwell em ver as coisas em branco e preto. A nossa própria sociedade de consumo o horrorizava. Ele notou nela germes de desumanidade quase comparáveis aos que são endêmicos no stalinismo. Orwell voltou da Catalunha com uma espécie de desolada e estoica fé num socialismo humano que nem o Oriente nem o Ocidente estão preparados para adotar, a não ser em escala limitadíssima. Transformar 1984 em um panfleto da guerra fria intelectual é interpretar mal e reduzir o livro. A verdadeira alegoria da sociedade soviética na obra de Orwell é A revolução dos bichos.
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George Steiner. "O escritor e o comunismo" (1961). Linguagem e silêncio. Tradução de Gilda Stuart e Felipe Rajabally. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 305-306.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Michon, Foucault (3)

Michon e Foucault se encontram em Vasari - Foucault em "O 'não' do pai", que para chegar na biografia que Laplanche faz de Hölderlin faz um desvio nas vidas de Vasari; e Michon em Senhores e criados, que se apropria da vida de Piero della Francesca tal como contada por Vasari. Mas os caminhos que levam Foucault e Michon a Vasari são diversos. No caso de Michon, é provável que sua chegada em Vasari tenha se dado por intermédio de Marcel Schwob - já que as Vidas minúsculas de Michon são as Vidas imaginárias de Schwob noventa anos depois. 
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O tratamento de Vasari, porém, é completamente distinto: Schwob, como sabemos, retoma Paolo Uccello a partir do texto de Vasari, retoma e remonta, corta pedaços da vida de Uccello e vai costurando a partir do método de suas Vidas imaginárias, ou seja, evidenciando os detalhes mais luminosos, aqueles que já a partir da primeira leitura perduram, recriam a própria atenção dispensada a eles; em Michon, em Senhores e criados, Piero della Francesca é uma sombra distante que de quando em quando toca a história com a franja de seus limites. Semelhante àquilo que Tom Stoppard faz em Rosencrantz & Guildenstern Are Dead, retomada do Hamlet de Shakespeare na qual Hamlet funciona como a sombra distante, Michon refaz a vida desse pintor menor, Lorentino d'Angelo, discípulo de Piero, vivo em uma breve linha de Vasari - que Michon expande e faz proliferar.  

sábado, 8 de novembro de 2014

Michon, Foucault (2)

1) Foi na revista Critique - fundada por Bataille em 1946 -, na edição 178, março de 1962, que Foucault publicou "O 'não' do pai", Le 'non' du père, sua resenha ao livro de Jean Laplanche, lançado no ano anterior, Hölderlin e a questão do pai. Assim como não é possível entender a formação de Michon como leitor sem as revistas, não é possível entender a formação de Foucault como escritor sem considerar o mesmo processo - como visto, "A vida dos homens infames", texto seminal, saiu na Cahiers du chemin, revista que publicou também seu texto sobre Magritte, "Isto não é um cachimbo". 
2) Há um ponto específico que permite a aproximação entre Michon e o Foucault de "O 'não' do pai": parte da argumentação contida nesse ensaio de Foucault sobre Hölderlin funciona como imagem especular tanto das "vidas infames" quanto das Vidas minúsculas. No meio do texto, numa de suas digressões tão exercitadas, Foucault comenta Vidas dos artistas, de Giorgio Vasari, chamando a atenção para o modo heroico e épico que Vasari escolhe para retratar suas vidas - ressaltando especialmente certo caráter predestinado dos grandes artistas (Giotto desenhando nas pedras e sendo descoberto por Cimabue; Verrocchio abandonando a pintura quando vê um desenho de Da Vinci; Ghirlandaio inclinando-se diante de Michelangelo), um registro triunfalista que será completamente estranho tanto aos "infames" quanto aos "minúsculos". 
3) Mas Hölderlin também interrompe esse registro, argumenta Foucault, quando passa a pensar "a ligação entre a obra e a ausência de obra", ou seja, a loucura - daí também o uso do non du père, ou do nom du père, jogo polissêmico usado por Lacan para resgatar o Freud de Totem e tabu em seu seminário sobre as psicoses (1955-1956). O "não" do pai como ausência de obra e, consequentemente, como fuga do registro triunfalista e abertura para o efêmero, o infame e o minúsculo, aquilo que não é digno de nota (é importante que seja justamente em Critique que encontremos esse texto de Foucault, e aí voltamos ao ponto inicial: Foucault vai alcançar, na revista fundada por Bataille, uma recusa da obra triunfalista que casa perfeitamente com a noção de dépense de Bataille, ou seja, o gasto, a inutilidade, a excentricidade de uma combustão não-triunfalista, minúscula, subalterna).

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Michon, Foucault (1)

Michon, na conversa com Arlette Farge, não tinha certeza de onde tinha lido "A vida dos homens infames", o texto de Foucault - na Nouvelle Revue Française ou na Cahiers du chemin? 1977 ou 1978? Foi em 1977, no número 29 da revista Cahiers du chemin, que Foucault publica "A vida dos homens infames", revista fundada por Georges Lambrichs (que primeiro trabalhou na Minuit, editando Beckett, e em seguida passou à Gallimard). A Cahiers du chemin durou 30 números, de 1967 a 1977 - Foucault publica "A vida dos homens infames" no penúltimo número da revista, portanto -, e a partir de 1977 ela se funde à Nouvelle Revue Française (talvez por isso a incerteza de Michon entre uma e outra?).
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Michon se define, indiretamente, na entrevista, como um leitor de revistas - um leitor das revistas que surgiam no contexto francês das décadas de 1960 e 1970 (Michon estudou na universidade de Clermont-Ferrand na década de 1960, justo no período em que Foucault era ali diretor do Instituto de Psicologia). Não apenas lendo Foucault na Cahiers du chemin, mas também Barthes, Kristeva e Pleynet na Tel Quel (fundada por Philippe Sollers em 1958, durando até 1982) ou na Critique (fundada por Georges Bataille em 1946), lendo, enfim, o presente, em busca de algo que talvez não soubesse bem o quê (lembremos que Michon é um escritor tardio e como, em Vidas minúsculas, ele faz dessa decisão tardia de escrever matéria de ficção) e que talvez continue buscando ainda hoje.
     

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Michon, Foucault

No terceiro número da revista Cahiers de la Villa Gillet, de novembro de 1995, número temático dedicado ao "testemunho", a historiadora Arlette Farge (autora de O sabor do arquivo) conduz uma entrevista com Pierre Michon, tendo Michel Foucault como tema principal. "Você leu Foucault?", pergunta Farge; e antes da resposta, deixa sua pergunta mais precisa: "você leu, por exemplo, 'A vida dos homens infames', de Foucault?". Farge e Michon falavam sobre Vidas minúsculas, o primeiro livro de Michon, publicado em 1984, ano da morte de Foucault, daí a aproximação com as "vidas infames". "Não sou leitor de filosofia", responde Michon, "mas esse texto, 'A vida dos homens infames', eu com certeza li - li em 1977 ou 1978", continua Michon, "na Nouvelle Revue Française ou na Cahiers du chemin e teve uma influência direta sobre mim". E Michon conclui dizendo: "foi provavelmente daí que tirei o título de meu livro. Foucault foi um dos destinatários secretos de Vidas minúsculas".