sábado, 20 de setembro de 2014

Um personagem de Céline

Céline em Saint-Malo, 1933
1) Pierre Michon, em Vidas minúsculas, conta duas histórias paralelas de formação: já comentei a primeira, que se desenvolve a partir do surgimento dessas vidas minúsculas, desses indivíduos esquecidos, parentes e vizinhos, que Michon toma como sua responsabilidade (ou como seu fardo, o fardo da vivência direta, que ele deve abandonar para poder ser um escritor de fato, ou seja, da imaginação - o narrador reclama continuamente de sua imobilidade, do desconfortável silêncio da folha em branco); a segunda história de formação é aquela que surge quando o narrador começa a acionar suas referências, seus modelos, seus fantasmas literários - Rimbaud, Céline, Balzac.
2) Se a primeira trama, a trama das vidas minúsculas, pode ser encarada como o fardo que precisa ser liberado para que a segunda trama possa emergir, pode também ser pensada numa perspectiva complementar: o contato com as vidas minúsculas na infância, argumenta o narrador de forma sutil e muitíssimos anos depois (depois de finalmente se livrar da sombra do Não), é o que lhe faz não apenas valorizar e cultivar as outras vidas, as vidas ilustres das referências e dos modelos, mas movimentá-las de forma criativa, crítica, dramática (drama como ação, movimento). 
3) Compreende-se melhor, dessa forma, as várias menções de Michon a Faulkner e Céline. "Eu era um personagem de Céline saindo de férias", diz o narrador, com sua namorada entristecida e desgostosa, ambos debaixo da chuva, carregando malas em bicicletas motorizadas (uma das malas está estupidamente cheia de livros, inúteis, diz o narrador, que só serviam para mostrar quão longe ele estava de poder escrever - "livros que me serviam como a um forçado sua bola de ferro", p. 141), que despencam em plena estrada. Faulkner e Céline como vetores desse lado minúsculo da vida, esquecido, que dão acesso a uma espécie de sentimento subalterno do mundo, trabalhado e configurado a partir da exploração de uma série de enigmas insolúveis, decorrentes não da acuidade do raciocínio do escritor (o criador, a originalidade, a essência), mas da natureza prospectiva de seu olhar sobre o mundo (o coletor, o bricoleur, o ready made).  

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