terça-feira, 25 de março de 2014

Goya e o corpo morto

1) Em seu livro sobre Goya, Todorov insiste na centralidade do corpo morto (despedaçado, violado, violentado) em suas gravuras, especialmente aquelas sobre os desastres da guerra. A investida de Napoleão (e a resistência espanhola, não menos cruel) é condensada nessa figura do corpo morto no campo - uma sensação e uma percepção que poucos anos depois alcançarão também a geografia da cidade, com Balzac.
2) Comentando as fotografias de Eugène Atget na década de 1920, Walter Benjamin vai falar desse ambiente propício ao crime que é a geografia da cidade, Paris, e suas ruas desertas - Benjamin condensa a história da modernidade em uma imagem negativa, em sua potência para o recebimento do corpo morto, sua vocação para o crime. Kusniewicz, em O rei das duas Sicílias, se encaixa nessa linhagem que vem de Goya ao colocar no centro do conflito da Primeira Guerra Mundial o corpo morto de uma cigana - ponto de encontro da colcha de retalhos de idiomas e ideologias que é o Império Austro-Húngaro (que será "imagem negativa" também para Joseph Roth ou Sándor Márai, sempre girando ao redor dessa ausência irremediável).
3) Em 1931, Fritz Lang lança M., o vampiro de Dusseldorf, que multiplica os corpos mortos, mantendo também a ligação com a geografia da cidade e com a ideia da ficção como elaboração e reconstrução do real (o filme é inspirado num fait divers, daí o documentalismo que o liga a Atget). A polícia é incapaz de encontrar o assassino com seus métodos (o cada vez mais rico arsenal do "paradigma indiciário" de Carlo Ginzburg, a ciência, a geometria, a química); cabe ao submundo a mobilização - ladrões, traficantes, mendigos se unem para fechar o cerco. Um poder paralelo, uma estrutura subterrânea que vive à margem da sociedade e que, de repente, ganha destaque (o tema de parte da literatura argentina do século XX, especialmente aquela que sente o fluxo dos anarquistas de 1919, como Roberto Arlt, ou Ernesto Sabato - a construção de Sobre herois e tumbas, aliás, lembra o filme/roteiro de Lang, vide a abertura que também remete a uma notícia de jornal e a mobilização do submundo (a Seita Sagrada dos Cegos) - no filme de Lang é um cego que descobre o criminoso, reconhecendo seu modo de assobiar).

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