sexta-feira, 28 de março de 2014

Desenho, desígnio

Frontispício da segunda edição das Vidas de Vasari (1568), detalhe.
Georges Didi-Huberman, em Diante da imagem (trad. Paulo Neves, ed. 34, 2013), passa longo tempo comentando as Vidas de Giorgio Vasari, sobretudo a ideia de que o desenho é a fonte de tudo, "pai de nossas três artes", arquitetura, escultura e pintura. A palavra disegno, escreve Didi-Huberman a partir de Vasari, "era tanto uma palavra do espírito quanto uma palavra da mão", servia "para constituir a arte como um campo de conhecimento intelectual" (p. 103). Disegno é uma palavra mágica para Vasari, polissêmica, antitética, infinitamente manejável - um significante flutuante. O conjunto das definições de disegno em italiano, informa Didi-Huberman, recobre "o que a língua francesa denota com os vocábulos dessin [desenho] e dessein [desígnio], outrora idênticos"; "é uma palavra descritiva e uma palavra metafísica", continua Didi-Huberman, "uma palavra técnica e uma palavra ideal", aplicando-se "à mão do homem, mas também a sua fantasia imaginativa, e igualmente a seu intelletto, e ainda a sua anima - para finalmente se aplicar ao Deus criador de tudo" (p. 105). E mais adiante completa: "o disegno de Vasari" tentava "suturar tudo, promover a unidade do intelecto e da mão, do conceito e da intuição" (p. 122). 
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Foi essa palavra que chamou minha atenção, dessein, usada por Didi-Huberman como desdobramento francês do disegno italiano de Vasari. É esse termo que finaliza o grande conto de Poe, "A carta roubada", essa obra-prima já tão castigada pelos comentários. É um verso de Crébillon, citado por Dupin na carta falsa que ele deixa no lugar da "carta roubada": ...un dessein si funeste, s'il n'est digne d'Atrée, est digne de Thyest. Dois irmãos, claro, Atrée e Thyest, unidos numa mesma mentalidade perversa, como Dupin e seu adversário, o Ministro D (D de Dupin? um duplo como William Wilson?). Mas antes de tudo esse dessein, esse desígnio, esse traço, esse conjunto de rastros que deixam para trás, essa sagacidade que serve tanto para o crime quanto para a solução do crime. Esse desígnio (projeto, trama, cartografia) que é inteiramente de Poe, elevado a "Deus criador de tudo", como escreve Didi-Huberman. A palavra design, de resto, é amplamente utilizada por Poe em seus contos (vide aqui). 

terça-feira, 25 de março de 2014

Goya e o corpo morto

1) Em seu livro sobre Goya, Todorov insiste na centralidade do corpo morto (despedaçado, violado, violentado) em suas gravuras, especialmente aquelas sobre os desastres da guerra. A investida de Napoleão (e a resistência espanhola, não menos cruel) é condensada nessa figura do corpo morto no campo - uma sensação e uma percepção que poucos anos depois alcançarão também a geografia da cidade, com Balzac.
2) Comentando as fotografias de Eugène Atget na década de 1920, Walter Benjamin vai falar desse ambiente propício ao crime que é a geografia da cidade, Paris, e suas ruas desertas - Benjamin condensa a história da modernidade em uma imagem negativa, em sua potência para o recebimento do corpo morto, sua vocação para o crime. Kusniewicz, em O rei das duas Sicílias, se encaixa nessa linhagem que vem de Goya ao colocar no centro do conflito da Primeira Guerra Mundial o corpo morto de uma cigana - ponto de encontro da colcha de retalhos de idiomas e ideologias que é o Império Austro-Húngaro (que será "imagem negativa" também para Joseph Roth ou Sándor Márai, sempre girando ao redor dessa ausência irremediável).
3) Em 1931, Fritz Lang lança M., o vampiro de Dusseldorf, que multiplica os corpos mortos, mantendo também a ligação com a geografia da cidade e com a ideia da ficção como elaboração e reconstrução do real (o filme é inspirado num fait divers, daí o documentalismo que o liga a Atget). A polícia é incapaz de encontrar o assassino com seus métodos (o cada vez mais rico arsenal do "paradigma indiciário" de Carlo Ginzburg, a ciência, a geometria, a química); cabe ao submundo a mobilização - ladrões, traficantes, mendigos se unem para fechar o cerco. Um poder paralelo, uma estrutura subterrânea que vive à margem da sociedade e que, de repente, ganha destaque (o tema de parte da literatura argentina do século XX, especialmente aquela que sente o fluxo dos anarquistas de 1919, como Roberto Arlt, ou Ernesto Sabato - a construção de Sobre herois e tumbas, aliás, lembra o filme/roteiro de Lang, vide a abertura que também remete a uma notícia de jornal e a mobilização do submundo (a Seita Sagrada dos Cegos) - no filme de Lang é um cego que descobre o criminoso, reconhecendo seu modo de assobiar).

segunda-feira, 24 de março de 2014

Broch em Said

Hermann Broch, 1886-1951
1) Um aspecto interessante e importante da exposição de Edward Said em Estilo tardio é a percepção, continuamente reforçada, que o "estilo tardio" é uma noção (uma metáfora, uma ideia) compartilhada, que se espalha generosamente pela história da cultura (Said resgata Eurípides, por exemplo, lendo-o em contraponto com Sófocles, mostrando a ambivalência do primeiro, seu uso tenso das referências históricas e de seus cruzamentos com o contemporâneo, algo não tão pronunciado no segundo).
2) Pois a noção de "estilo tardio" é retirada por Said de um ensaio de Adorno, é ele que lhe dá a configuração teórica básica que permite a prospecção de esforços semelhantes. No último ensaio do livro, Said resgata um comentário de Hermann Broch sobre a Ilíada de Homero - na realidade, trecho de um ensaio que Broch preparou como prefácio ao livro de Rachel Bespaloff, On the Iliad: A Study of Homer's Interpretation of Man in War and in Peace (1947). O termo usado por Broch, escreve Said, é "estilo de velhice", algo que "nem sempre é fruto dos anos", escreve Broch, algo que amadurece com o tempo, "um novo nível de expressão, à maneira do velho Tiziano, descobrindo a luz penetrante que funde a carne e a alma humanas numa nova unidade".
3) E é nesse ponto que Broch se aproxima de Todorov, no momento em que se aproxima de Goya: "à maneira de Rembrandt e Goya, ambos no ápice da idade viril, descobrindo a superfície metafísica, subjacente ao que há de visível nos homens e nas coisas e contudo passível de ser pintada" (Broch se refere ao primeiro período de ruptura de Goya, época do colapso que o leva a surdez - Goya tem 45 anos). E Broch continua, citado por Said: "ou à maneira da Arte da fuga que Bach ditou na velhice, sem pensar em nenhum instrumento específico, pois o que tinha de expressar estava aquém ou além da superfície audível da música" (Estilo tardio, tradução de Samuel Titan Jr, Cia das Letras, 2009, p. 156).

quarta-feira, 19 de março de 2014

Goya, estilo tardio

Goya, Autorretrato com Arrieta, 1820, detalhe
Em seu livro recente sobre Goya (Goya à sombra das luzes, tradução de Joana Angélica d'Avila Melo, Companhia das Letras, 2014), Tzvetan Todorov menciona os dois grandes momentos de ruptura na obra do pintor espanhol, ambos motivados por doenças - um colapso que o levará à surdez em 1792 e, em 1819, uma doença misteriosa que por pouco não tira sua vida. "O sentimento de haver beirado a morte", escreve Todorov sobre Goya, "lhe dará uma liberdade nova, como se ele percebesse que, nos poucos anos de vida que lhe restavam, já não precisava levar em conta nenhuma convenção, conformar-se a nenhuma regra: pode e deve dar livre curso à busca da verdade na qual se comprometera" (p. 198). Para marcar essa ruptura e celebrar sua salvação, Goya pinta um autorretrato agonizante ao lado de seu médico, e lhe dá o quadro de presente. A partir daí, passa a realizar as obras hoje conhecidas como "Pinturas negras". 
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A reflexão de Todorov está perfeitamente alinhada com aquela de Said em Estilo tardio - há inclusive o paralelo possível de Beethoven e Goya através da surdez, elemento fundamental para a transformação da poética de ambos, que eram rigorosamente contemporâneos (Beethoven morreu em 1827, Goya em 1828). Said, no entanto, é bem mais rigoroso que Todorov no que diz respeito às possibilidades, tanto estéticas quanto políticas, desse movimento de transformação procedimental envolvido no "estilo tardio" (a reflexão de Said sobre Beethoven, por exemplo, é articulada a partir de Adorno - Said lê os escritos de Adorno sobre Beethoven com um olhar tríplice: o estilo tardio de Beethoven per se, a interpretação desse estilo por Adorno e, finalmente, o quanto Adorno revela de seu próprio estilo tardio a partir de seus escritos sobre Beethoven).

terça-feira, 18 de março de 2014

Antigos mestres

Por alguma razão obscura, eu pensava em Sebald enquanto lia Antigos mestres, o romance que Thomas Bernhard publicou em 1985. Talvez fosse por conta dessa tática de aprendizado a partir da escuta, que Bernhard executa tão bem em Antigos mestres e que também movimenta toda a construção do Austerlitz de Sebald. Sebald narra a partir daquilo que escuta de Jacques Austerlitz, histórias sobre a potência enganadora do passado, sobre a mobilidade insidiosa da memória - e um pouco disso também está em Antigos mestres, já que Atzbacher narra aquilo que o velho Reger lhe conta (embora haja um sutil deslocamento no final do romance de Bernhard, um sutil deslocamento que revela a presença de uma terceira voz, que abarca tanto a de Atzbacher quanto a de Reger e finaliza o livro, deixando os dois personagens no caminho para o teatro). É claro que para além dessa atmosfera difusa de rememoração do passado e atravessamento de vozes (Austerlitz, Reger), o que poderia realmente aproximar Antigos mestres da obra de Sebald é a obsessão pelo visível, a obsessão pela convivência com a imagem - porque o Reger de Bernhard tem como hábito passar horas a fio olhando o mesmo quadro, o Homem de barba branca, de Tintoretto, e vem fazendo isso há anos, dia sim, dia não (nada mais sebaldiano, portanto, esse pacto obsessivo com a imagem).  
Tintoretto, Homem de barba branca, 1545

domingo, 9 de março de 2014

Purificação e método

Contextualização: em outubro de 1977, na Universidade Columbia, em Nova York, convidado por Edward Said, Jacques Derrida oferece um seminário sobre Heidegger, sobre a origem da obra de arte, sobre Van Gogh e suas imagens dos sapatos. Derrida resgata Meyer Schapiro e sua contestação das ideias "generalistas" de Heidegger sobre os quadros de Van Gogh. É desse confronto que Didi-Huberman fala abaixo:
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Quando encontramos uma resposta, caberia sempre reinterrogar a pergunta que a viu nascer, não se satisfazer com respostas. O historiador da arte que desconfia naturalmente do "teórico", em realidade desconfia, ou melhor, teme o fato estranho de que as questões podem perfeitamente sobreviver às respostas. Meyer Schapiro, que renovou tantas problemáticas e reformulou admiravelmente tantas perguntas, incorreu ele mesmo no perigo - esse perigo epistemológico, igualmente ético, que definiremos por sua consequência extrema, a suficiência e o fechamento metodológicos. Quando opunha seus sapatos de Van Gogh, "corretamente atribuídos", aos de Heidegger, Schapiro sem dúvida punha o dedo em algo importante, ele deslocava de novo a questão. Mas ele terá dado a muitos (certamente não a si mesmo) a ilusão de resolver a questão, de encerrar o assunto - portanto de simplesmente invalidar a problemática heideggeriana. É ainda a ilusão de que o discurso mais exato, nesse domínio, seria necessariamente o mais verdadeiro. Mas um exame atento dos dois textos remete, no fim das contas, os dois autores à sua parte recíproca de mal-entendido - sem que a exatidão, e em particular a atribuição desses sapatos "de" Van Gogh, possa decididamente se valer da verdade "'de' tal pintura" (em nota: é uma das consequências da análise feita por J. Derrida sobre esse debate entre M. Schapiro e M. Heidegger: análise que põe em questão, nos dois autores, o "desejo de atribuição" interpretado como "desejo de apropriação").
Georges Didi-Huberman. Diante da imagem. Trad. Paulo Neves, Ed. 34, 2013, p. 44-45.
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Desde 1937, os nazistas haviam iniciado, em todo o Reich, amplos expurgos de obras indesejáveis, eliminando - seja por venda, seja por destruição - cerca de dezessete mil pinturas, desenhos e esculturas dos museus alemães. Por meio dessa venda, cujos lucros iriam encher os cofres do Partido Nazista, o regime hitleriano se desfazia de uma vez por todas de cento e vinte e cinco obras-primas que por razões ideológicas já não tinham lugar nos museus nacionais.
No grande leilão de junho em Lucerna, o mais prestigiado do projeto nazista de purificação artística, o catálogo de vendas de Fischer apresentava uma insuperável seleção de obras de artistas modernos rejeitados oficialmente pelos alemães. Estavam à venda a Mulher bebendo absinto, pertencente ao período azul de Picasso, um magnífico Autorretrato de Van Gogh, as Banhistas de Matisse, o Rabino de Chagall, obras de Kokoschka, de Franz Mark e de muitos outros artistas modernos.
Héctor Feliciano. O museu desaparecido: a conspiração nazista para roubar as obras-primas da arte mundial. Trad. Silvana Leite, WMF Martins Fontes, 2013, p. 208.
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O expurgo hitleriano, por esse perspectiva e através desse contraste com a citação de Didi-Huberman, torna-se também um problema epistemológico, uma questão de método (como surge também na reflexão de Dolf Oehler). Em termos epistemológicos, e para retomar os termos que Derrida usou em seu comentário sobre Schapiro e Heidegger, o expurgo hitleriano remove o "desejo de atribuição" e deixa apenas o "desejo de apropriação", instaurando também a impossibilidade de dissenso, de revisão de rearranjo histórico. A "purificação" hitlerista é análoga ao perigo "ético e epistemológico" comentado por Didi-Huberman por conta do "fechamento metodológico". 

terça-feira, 4 de março de 2014

O paradigma Kurtz

1) A partir de Joseph Conrad, Edward Said observa uma inflexão que vai se tornando mais pronunciada com o passar do tempo: se em Conrad, num primeiro momento, a viagem ainda é necessária para encontrar o Outro e a perversão do Outro (o Congo no Coração das trevas ou a América Latina em Nostromo), essa necessidade vai aos poucos se diluindo no aspecto reflexivo (ou autoimune, para usar um termo fundamental para a última fase de Derrida) dessa perversão do Outro, que se transforma em perversão do Mesmo (em Coração das trevas, ainda que esteja do outro lado do mundo, distante do coração do Império, Kurtz e seus excessos são partes inerentes à lógica do Império).
2) "Toda característica atribuída ao Outro já está presente no coração mesmo dos EUA", comenta Slavoj Zizek sobre o 11 de Setembro. Zizek fala dos fundamentalistas de direita que "reagiram aos acontecimentos" "vendo neles um sinal de que Deus retirava dos EUA a sua proteção por causa das vidas pecaminosas dos americanos, lançando a culpa no materialismo hedonista, no liberalismo e na sexualidade desvairada, e afirmando que a América havia recebido o que merecia". Repete-se a inflexão entre próprio e alheio constatada por Said em Conrad: "O fato de a condenação da América 'liberal' feita pelo Outro Maometano", escreve Zizek, referindo-se à justificativa "ideológica" ao ataque às Torres, "ser a mesma que se originou no coração da Amérique profonde deve nos fazer pensar"; "o verdadeiro choque é o choque no interior de cada civilização" (Bem-vindo ao deserto do Real!, tradução de Paulo Cezar Castanheira, Boitempo, 2003, p. 60-61).
3) Esse é o tema dos grandes livros de Don DeLillo, como Libra, Submundo ou Cosmópolis, que são romances que lidam mais diretamente com o 11 de Setembro do que Homem em queda, justamente pela consciência sutil de que a busca pela perversão do Outro é uma espécie de investigação diante do espelho. No caso de Libra, assim como acontece em Casei com um comunista, de Philip Roth, existe um exercício de sobreposição dos antagonistas: os dois lados - americanos e soviéticos - não são realmente opostos, eles pertencem ao mesmo campo (o drama pode ser rastreado até para além do Kurtz de Conrad, alcançando, por exemplo, a reflexão de Dostoiévski sobre o terrorismo interno em Os demônios - que é precisamente e certamente não por acaso (vide as reflexões sobre política externa em Diário de um ano ruim) o contexto resgatado por Coetzee no Mestre de Petersburgo).