quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O dia do Juízo, 3

Nuoro, Sardenha, cemitério
1) Ao resenhar o romance de Salvatore Satta, Julian Barnes fala dessa sensação de que o romance não estaria exatamente contando uma história, mas construindo um ambiente. Essa sensação faz realmente parte da artimanha romanesca de Satta, especialmente porque o que está em jogo em seu livro é a reconstituição ficcional de um espaço geográfico que é ao mesmo tempo histórico (a Sardenha do início do século XX, antes da I Guerra Mundial) e metafísico (uma terra assombrada pela presença dos mortos, pela solidão e pela aridez).
2) George Steiner fala do romance de Satta como "uma das obras-primas da solidão na literatura moderna" e, retomando até certo ponto essa oscilação entre o espaço histórico e o metafísico, afirma que "não existe outra maneira de visualizar por completo" a paisagem do romance "a não ser visitando Nuoro e sentindo sua estrutura óssea": Il giorno del giudizio "é um livro dos mortos e para os mortos. Para um sardo, para um nuorense [de Nuoro, a cidade de Satta], há apenas um lugar capaz de receber essa preciosidade: o cemitério" (mais sobre os cemitérios aqui). Mas Satta questiona constantemente a própria possibilidade de evocar os mortos ao longo do romance, interferindo com sua voz externa na ilusão homogênea da narração - se o espaço oscila entre o histórico e o metafísico, Satta faz com que essa oscilação se desdobre também em direção ao registro estilístico e formal.
3) "Tirando Walter Benjamin", escreve Steiner, "nenhum rememorador transmite com maior pungência do que Salvatore Satta o direito dos vencidos, dos ridículos e dos exteriormente insignificantes de ser lembrados com precisão". Os ritos dessa existência são tão antigos quanto Homero, escreve Steiner. O romance de Satta faz uso desse substrato arcaico de presenças anônimas que, paradoxalmente, abarrotam a história com suas ausências. Metade dessa sensação típica do romance de Satta está também em Robert Walser (no pudor da narração, na dúvida, na hesitação), e a outra metade, aquela dos vencidos e dos ridículos anônimos, está também em Joseph Roth, em Fuga sem fim, em todas aquelas figuras que Franz Tunda encontra, vislumbra e esquece nas profundezas do Leste Europeu.    

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