segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Profetas bêbados

1) Da mesma forma que Ricardo Reis, na ficção de Saramago, reflete em seu corpo a decadência de Portugal - ele morre porque morre Portugal tal como lhe era familiar -, também em Afirma Pereira o corpo do protagonista espelha essa dissolução externa. Nada mais típico da época, essa progressiva consciência de que o mal de fora apodrece também a subjetividade (está em Freud, está em Benjamin). O coração de Pereira não vai bem, ele não consegue subir a ladeira que leva a sua casa, tem que pedir ao táxi que o leve (e deve pagar uma gorjeta extra para que isso aconteça). "Alô, doutor, disse Pereira, aqui é Pereira. Então, como vai?, perguntou o doutor Costa. Estou ofegante, respondeu Pereira, não consigo subir as escadas e acho que engordei uns quilos, e é só dar um passeio que meu coração fica aos sobressaltos" (p. 68).
2) Joseph Roth foi quem melhor personificou esse espelhamento somático da situação política europeia na década de 1930, condensando de forma incisiva algo que é só sugerido em Tabucchi e Saramago. Ilse Lazaroms fala dessa feição "profética" da obra e da figura de Roth, sua capacidade de captar com antecedência as repercussões do contexto histórico traumático - algo que, no caso de Roth, cobrou seu preço, transformando-o numa "profeta bêbado", já que "a queda da Europa em direção a outra guerra seguiu em paralelo ao próprio declínio de Roth em direção ao alcoolismo" (The Grace of Misery. Joseph Roth and the Politics of Exile, Leiden: Brill, 2013, p. xiv). Destino bastante semelhante ao de Fernando Pessoa, por sinal (alguns dizem que Pessoa morreu por conta de uma pancreatite aguda, causa de morte semelhante à de Roberto Bolaño).
3) E com relação a Pereira é preciso levar em consideração o aviso de Tabucchi na nota introdutória ao romance, frisando o passado judaico do nome Pereira - algo que se torna bastante sintomático quando a aventura de Pereira é posta ao lado das histórias de Benjamin ou Roth, por exemplo; e também quando se relembra que o destino de Pereira, no fim do romance, quando ele abandona seu nome e seu país, é justamente a França (ou pense em Gombrowicz chegando a Buenos Aires em 1939). Consta que Joseph Roth morreu em 27 de maio de 1939, depois de ter um colapso, em 23 de maio de 1939, ao receber a notícia do suicídio de Ernst Toller, dramaturgo, seu amigo, enforcado em um hotel de Nova York.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Pereira e a versão oficial

1) Pereira trabalha num jornal, o jornal Lisboa, cuidando da página cultural, depois de trinta anos trabalhando como repórter policial de um grande jornal, que não é nomeado. Há no romance esse permanente contato com o jornalístico, com a rotina da notícia, da pauta, da versão oficial - o diretor do jornal não poderia estar mais alinhado ao regime de Salazar e, ironicamente, o único meio do jornalista Pereira obter qualquer informação crítica sobre Portugal é a partir do garçom do Café Orquídea, que escuta, clandestinamente, estações de rádios estrangeiras.
2) Nesse e em alguns outros pontos, Afirma Pereira, de Tabucchi, pode ser aproximado de O ano da morte de Ricardo Reis, romance que Saramago publica em 1984 (que Tabucchi iria reescrever dez anos depois com Os três últimos dias de Fernando Pessoa, de 1994, mesmo com toda a má-vontade do português com o italiano, que de qualquer forma não servia de nada a esse último). Se é possível aproximar a desaparição de Reis e Pereira a partir da perspectiva política (suas "mortes" são respostas ao mergulho de Portugal no fascismo), fugindo da aproximação fácil entre Saramago e Tabucchi a partir somente de Pessoa, é possível também aproximá-los no contato com a rotina jornalística: no romance de Saramago, Salazar aparece nas ridículas palavras de exaltação dos jornais que Ricardo Reis lê no Hotel Bragança, quando faz hora para o jantar ou quando toma o pequeno almoço em seu quarto. Reis vai aos poucos se dando conta que o Portugal que encontra - depois de dezesseis anos de exílio brasileiro - é um Portugal esvaziado, feito da ridícula "versão oficial" (é o fantasma de Pessoa quem lhe dá a melhor definição: se veio para dormir, a terra é boa para isso (O ano da morte de Ricardo Reis, Companhia das Letras, 1988, p. 94), e mais:
Duas horas deram, duas e meia, lidos foram e tornados a ler estes dessangrados jornais de Lisboa, desde as notícias da primeira página, Eduardo VIII será o novo rei de Inglaterra, o ministro do Interior foi felicitado pelo historiador Costa Brochado, os lobos descem aos povoados, a ideia do Anschluss, que é, para quem não saiba, a ligação da Alemanha à Áustria, foi repudiada pela Frente Patriótica Austríaca, até aos anúncios, Pargil é o melhor elixir para a boca, amanhã estreia-se no Arcádia a famosa bailarina Marujita Fontan, veja os novos modelos de automóveis Studebaker, o President, o Dictator, se o anúncio do Freire Gravador era o universo, este é o resumo perfeito do mundo nos dias que vivemos, um automóvel chamado Ditador, claro sinal dos tempos e dos gostos. (p. 123-124 - lembrando que também Ensaio sobre a lucidez Saramago faz uso da imprensa, de forma bastante semelhante àquela de Afirma Pereira, em que o texto veiculado é uma "mensagem engarrafada" destinada a poucos).
3) Essa rotina jornalística era típica da época - basta lembrar, por exemplo, a publicação seriada de Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin, em 1929, no Frankfurter Zeitung, jornal que abrigou tantos outros escritores, como Márai, Benjamin e Joseph Roth (e como a obra desses três é marcada por essa serialização, esse sentimento do imediato que vem da contribuição quase diária com os jornais da época). Há também essa curiosa e persistente proximidade entre o título dos periódicos e suas localizações geográficas, o que não deixa de ser irônico diante da intensa "desterritorialização" empreendida pelos autores citados, seja em obra, seja em vida - como está posto na pergunta que Pereira faz ao diretor do jornal Lisboa: "que raça podemos celebrar nós, os portugueses?".    

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Pereira e a citação

1) Afirma Pereira é um trabalho de citação, um trabalho da citação - Tabucchi está citando Pereira, glosando seu testemunho, esmiuçando suas palavras. E nesse movimento de citação está outrando-se, para citar a expressão de Fernando Pessoa (que é por sua vez continuamente citado por Tabucchi ao longo de sua obra). A citação quebra a pretensa naturalidade da progressão narrativa, dando conta de denunciar continuamente a natureza procedimental e artificiosa dessa mesma narrativa (e nisso Pereira é um personagem barthesiano, sobretudo do Barthes do "efeito de real" e da "ilusão referencial", já que Tabucchi "esvazia o signo" a partir da repetição e do "afastamento radical de seu objeto", questionando a "plenitude" da representação (Roland Barthes, "Efeito de real", O rumor da língua, tradução de Mario Laranjeira, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2004, p. 190) 
2) Pereira repercute essa dinâmica procedimental da citação em sua própria vida, em suas atividades, em sua circulação intelectual e política: além de Tabucchi armar um cenário polifônico, no qual a citação funciona como um sistemático posicionamento do outro, também Pereira, com suas traduções e seus necrológios e suas efemérides, coloca o outro em circulação, criando posições de enunciação que estão simultaneamente preenchidas e vazias. Fazer o outro falar, fazer o morto falar - e é precisamente nesse ponto que surge a citação, como uma espécie de ponto de contato entre ficção e historiografia. Na tradição de Walser, Hrabal ou Borges, Pereira é uma figura subalterna, que vive a História de forma parasitária, requisitando textos e presenças do passado e desenvolvendo sua personalidade e sua experiência de mundo a partir desses elementos estrangeiros.
3) Depois que o diretor do jornal Lisboa o chama, reclamando das traduções de escritores franceses e exigindo a aparição de algum autor português, Pereira abandona sua tradução de Georges Bernanos e decide buscar algo em Camilo Castelo Branco, mas logo desiste: "Deixou de lado as novelas de Castelo Branco, retomou Bernanos e pôs-se a traduzir o resto do capítulo. Se não podia publicá-lo no Lisboa, fazer o quê?, pensou, quem sabe poderia publicá-lo num volume, pelo menos os portugueses teriam um bom livro para ler, um livro sério, ético, que tratava de problemas fundamentais, um livro que faria bem à consciência dos leitores, pensou Pereira" (Afirma Pereira, tradução de Roberta Barni, Cosac Naify, 2013, p. 131). O momento em que Pereira abandona a utilidade da tradução, ou seu propósito, e a realiza simplesmente com o objetivo de fazê-la.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Fórmula e testemunho

1) O que primeiro e de imediato chama a atenção em Afirma Pereira, o romance de Antonio Tabucchi, é justamente essa fórmula recorrente: afirma Pereira - "quando Pereira chegou à estação, um maravilhoso pôr do sol pairava sobre a cidade, afirma"; "Às onze horas em ponto, afirma Pereira, sua campainha tocou"; "Às oito e trinta e cinco, afirma Pereira, entrou no Café Orquídea"; "Na manhã seguinte, Pereira acordou com o telefone tocando, afirma"; "Afirma Pereira que eram três homens vestidos com roupas civis e armados de pistolas".
2) Existe um pudor narrativo por trás do procedimento, que serve para marcar o caráter "fantasmagórico" de Pereira, que surgiu a Tabucchi como um "personagem à procura de um autor". Tabucchi escreve na nota introdutória ao romance que são "as confissões de Pereira", que lhe aparecia à noite e dava seu testemunho sobre "as tragédias do nosso passado recente": "as confissões de Pereira, unidas à imaginação de quem escreve, fizeram o resto". Essa fórmula encantatória, portanto, afirma Pereira, afirma Pereira, serve tanto como um gesto de filiação (Pessoa, Pirandello) quanto como uma espécie de fidelidade ao testemunho, uma espécie de fidelidade documental - mas serve principalmente para reforçar o momento derradeiro do romance, o momento em que Pereira deixa de ser Pereira e, consequentemente, já não pode mais contar sua história, ou ao menos essa história, esse testemunho restrito à violência totalitária de Salazar em agosto de 1938 (daí a importância dos três homens vestidos com roupas civis mais acima).
3) Ricardo Piglia faz algo semelhante em Respiração artificial, de 1980, lidando também com material semelhante: reescrita de fatos históricos, sobreposição de temporalidades, evocação de fantasmas. A analogia com o romance de Tabucchi pode ser feita sobretudo na segunda parte do romance de Piglia, cheia de construções como: "disse o Senador que Marcelo lhe havia dito"; "foi isso que disse o Senador"; "ditou o Senador e disse"; "O Senador disse depois que aquilo era tudo o que ele podia fazer. 'Isso', disse o Senador, 'é tudo o que posso fazer'"; chegando, surpreendentemente, a Wittgenstein (que depois retornará como professor de Tardewski, mas só depois, muito depois): " 'Eu, o Senador, preciso, por enquanto, calar-me. Já que sou incapaz de explicar-me sem palavras, prefiro emudecer. Prefiro emudecer, agora', disse o Senador, 'já que sou incapaz de explicar-me sem palavras' " (Respiração artificial, Tradução de Heloisa Jahn, São Paulo, Iluminuras, 1987, p. 59).

domingo, 22 de setembro de 2013

Tradução e resistência

1) Pereira, o protagonista de Afirma Pereira, o romance que Antonio Tabucchi publica em 1994, começa a "ler o conto de Maupassant que ele próprio traduzira, para verificar se havia alguma correção a fazer". Não encontrou nada, "o conto estava perfeito, e Pereira congratulou-se". Tradução e resistência: passar uma mensagem política na própria movimentação temporal dos textos, na própria movimentação cognitiva dos idiomas, como fez Isaac Bábel com o mesmo Maupassant. Tanto para Bábel quanto para Pereira a tradução serve como materialização da circulação de ideias, ampliação do horizonte de experiência, fuga do totalitarismo e de seu monolinguismo característico. 
2) E no caso de Afirma Pereira o contexto deixa essas aproximações ainda mais complexas e produtivas: Pereira é um fantasma que chega a Tabucchi como "um personagem à procura de um autor", mas um fantasma que lhe chega de Portugal, um fantasma que lhe chega em português (Bábel com o francês, Gógol com o italiano, Tabucchi com o português). Além disso, Tabucchi fantasia o encontro de Pessoa e Pirandello em uma breve peça de teatro intitulada Chamam ao telefone o senhor Pirandello, de 1988, e adapta a convocação fantasmática de personagens de Pirandello ao caso de Pessoa em Os três últimos dias de Fernando Pessoa, de 1994.
3) Continua Tabucchi: "Depois tirou do bolso do paletó um retrato de Maupassant que tinha encontrado numa revista da Biblioteca Municipal. Era um retrato a lápis, feito por um pintor francês desconhecido. Maupassant tinha um ar desesperado, com a barba desleixada e os olhos perdidos no vazio, e Pereira pensou que era perfeito para acompanhar o conto. Afinal, era um conto de amor e morte, precisava de um retrato que tendesse ao trágico". A evocação imagética de Maupassant, que é seguida de uma citação da enciclopédia que Pereira consulta - a imagem do escritor como um talismã, que Pereira guarda "no bolso do paletó" (Afirma Pereira, Tradução de Roberta Barni, Cosac Naify, 2013, p. 39).  

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Auerbach e a modéstia

David Damrosch escreveu um ensaio em que investiga o reflexo do exílio de Auerbach na Turquia na escrita de Mimesis - e um pouco mais, porque também rastreia certos momentos em que a argumentação de Auerbach procura processar, mesmo que indiretamente, a violência do nazismo ("Auerbach in Exile", Comparative Literature, v. 47, n. 2 (Spring, 1995), p. 97-117). Momentos em que Auerbach aparecia mesmo sem querer aparecer, algo que faz muito sentido em alguém que tanto escreveu sobre o sermo humilis e sobre o sublime cristão e sua valorização da modéstia. Talvez daí a admiração por Dante, que na Comédia se coloca continuamente e simultaneamente tanto como um reles mortal quanto como um abençoado, como alguém que teve acesso a algo inacessível e irrepetível, a viagem pelo além - por isso Auerbach escreve que Dante "transforma todo leitor em discípulo". E no mesmo ensaio, "Os apelos ao leitor em Dante", Auerbach apresenta aquela oscilação diagnosticada por Damrosch em Mimesis: porque, para dar conta de Dante, para dar conta da análise daqueles que considera os pontos altos da arte de Dante, Auerbach tem que se mostrar, e mostrar que está credenciado, com expressões como "...pelo menos em qualquer passagem latina medieval que eu conheça" ou "conheço ao menos uma apóstrofe clássica...", etc. ("Os apelos ao leitor em Dante", Ensaios de literatura ocidental, Trad. Samuel Titan Jr e José Marcos de Macedo, Ed. 34, 2007, p. 111-132). 

terça-feira, 3 de setembro de 2013

O horror e o artifício

1) Baudelaire, em O pintor da vida moderna, de 1863, escreve que se analisarmos "tudo o que é natural", "todas as ações e desejos do puro homem natural", "nada encontraremos senão horror". E continua: "tudo quanto é belo e nobre é resultado da razão e do cálculo. O crime, cujo gosto o animal humano hauriu no ventre da mãe, é originalmente natural. A virtude, ao contrário, é artificial, sobrenatural, já que foram necessários, em todas as épocas, e em todas as nações, deuses e profetas para ensiná-la à humanidade animalizada, e que o homem, por si só, teria sido incapaz de descobri-la" (Poesia e prosa, Trad. Ivo Barroso, Nova Aguilar, 2002, p. 874-875).
2) Típica construção de Baudelaire, cheia de contradições minuciosamente elaboradas, que funcionam poeticamente mesmo na prosa, contradições que exploram os níveis heterogêneos que se confrontam no interior de uma mesma ideia. Que tipo de artifício que gera o belo pode ser criado por um indivíduo que nasce no crime e no horror? Um belo que só pode nascer fictício, mascarado, paródico. A linguagem em Baudelaire é um rebuscado exercício de troça metafísica: que deuses e profetas são esses que podem ensinar o que quer que seja à "humanidade animalizada", essa mesma humanidade que os criou? Daí a valorização do satanismo e da demonologia por Baudelaire, signos de uma realização poética que toma o "horror" da condição humana como ponto de partida (assim como Oscar Wilde, Baudelaire era um admirador de Charles Maturin).
3) Um ano depois, em 1864, Dostoiévski publica Memórias do subsolo - obra-prima da natureza humana como horror: Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. É também por conta desse tipo de filiação subterrânea que Baudelaire encontrará os textos de Poe - que Baudelaire afirma ter reconhecido, eram pensamentos seus que ainda não haviam tomado corpo. Quando Cortázar escreveu que Poe e Baudelaire eram a mesma pessoa, talvez tivesse em mente não apenas a semelhança física, mas essa típica figura do horror que é o duplo, ou ainda, o abrupto estranhamento de si diante do espelho.