quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Semelhança de família


Na apresentação que faz à Sinagoga dos iconoclastas de Wilcock, Ruggiero Guarini fala de seu amigo: sentado em sua poltrona, isolado em sua casa na montanha, relendo Wittgenstein. Wilcock relendo Wittgenstein. Um dos verbetes da Sinagoga trata de um excêntrico diretor de teatro, Llorenç Riber, que levou aos palcos Investigações Filosóficas, de Wittgenstein. Pois é precisamente nesse livro que Wittgenstein fala da noção de semelhança de família - que define o objeto A como parente do objeto B pelo compartilhamento de algumas características em comum, e o objeto B parente do objeto C pela mesma razão, etc, o que faz com que, mesmo que A e C não tenham nada em comum, a semelhança comum com B os mantém na mesma família. Esse é o próprio tema subterrâneo da Sinagoga: armar um inventário de peças heterogêneas que, ainda assim, possa ser visto como um todo, sem, com isso, reivindicar qualquer tipo de totalidade. De um hipnotizador que caminha pelo ar para um cirurgião que desenvolveu um método de coagulação do sangue, deste para o pastor romeno que matava negros para o Juízo Final, em Belém do Pará, e assim sucessivamente. O centro está em todo lugar e em lugar algum, como numa coleção de cacos, tomados como cacos, e não como formas prévias de uma reconstrução.     

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Paranoico Pérez

1) Um elemento que costuma passar irrefletido no que diz respeito à breve história de Paranoico Pérez, aquele personagem de Bartleby e companhia cujas ideias são roubadas por José Saramago, é justamente o caráter delirante de suas ideias. Pensamos muito nos efeitos e esquecemos a causa - ou melhor, pensamos muito no fim da equação (a coincidência absurda entre as ideias de Pérez e os romances publicados por Saramago) e esquecemos o início, que diz respeito à possibilidade de surgimento de tais ideias. O horizonte, como em boa parte da produção de Vila-Matas, é blanchotiano: não se trata de perguntar o que é a literatura, questão banal, mas de perguntar como a literatura é possível (o ponto de partida foi Agamben, em um comentário sobre Blanchot).
2) A inventividade de Paranoico Pérez, que é a inventividade de Saramago, o delírio de Saramago, leva a questão a um grau de intensidade radical - e talvez o que Vila-Matas tenha tentado com Paranoico Pérez seja justamente uma clivagem nesse delírio, o estabelecimento de um centro alternativo para a órbita do delírio de Saramago. Nesse ponto, Saramago se aproxima de César Aira (naquilo que Chklóvski chama de semelhança do dissimilar): grande quantidade de livros publicados, esforço de apresentar um ponto de partida instigante em cada um deles - e eu quase escrevo "original", "ponto de partida original", e me dei conta de que também isso está em questão em ambos: Aira problematiza o original a partir do automatismo vanguardista duchampiano; Saramago problematiza o original a partir do desejo de fazer ficção a partir da História, dos fatos sólidos da tradição portuguesa.
3) Nesse sentido, é importante notar que Paranoico Pérez não possui a memória de Saramago - como acontece com a memória de Shakespeare, tema borgeano que Vila-Matas também vai utilizar. Porque a inventividade de Saramago, seu delírio, tem, sem dúvida, raízes na História, mas é fundamentalmente um procedimento de intervenção no presente. A Península Ibérica que se desprende e vira uma jangada; uma epidemia que cega toda a humanidade; um copista que muda a História com um "não"; a viagem de um elefante; a morte.   

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Pessoa no tempo

Fernando Pessoa resiste. Para José Augusto Seabra (Fernando Pessoa ou o poetodrama, p. 51), aquilo que Heidegger escreveu sobre Hölderlin na Introdução à metafísica, aquilo que Heidegger escreveu sobre a possibilidade de contato entre a palavra poética e a palavra filosófica, ganha repercussão plena na obra de Pessoa - "teatro do conflito entre Ser e Não-Ser", escreve Seabra. Para Leyla Perrone-Moisés, não se lê Hegel ou Lacan para ler Pessoa - é Pessoa quem possibilita a entrada em Hegel e Lacan ("não foi lendo Hegel que eu entendi melhor Pessoa; foi porque eu tinha Pessoa em mente que me encantei com a Ciência da Lógica, obra que, de outra forma, me pareceria absolutamente aborrecida ou, pior, totalmente impenetrável. Também foi à luz de Pessoa que muitas páginas de Lacan pareceram-me subitamente claríssimas, justas e de largo alcance", Fernando Pessoa, aquém do eu, além do outro. Martins Fontes, 1982, p. 5). O melhor de tudo é que boa parte da obra de Pessoa simplesmente não sustenta essas posições, como aqueles versos de Caeiro: Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores? ou ainda O único sentido íntimo das coisas / É elas não terem sentido íntimo nenhum (lembrando, aliás, que Caeiro é o mestre de todos). E daí é preciso recomeçar, e o tempo passa e Pessoa resiste.

sábado, 24 de agosto de 2013

Antonio Trabuchi

1) Na primeira edição de Fernando Pessoa ou o poetodrama, de 1974 (São Paulo: Perspectiva), já no final da Bibliografia, na página 207, quando faz a lista das publicações sobre Fernando Pessoa escritas em italiano, o autor do livro, José Augusto Seabra, faz referência a um trabalho intitulado La parola interdetta. Poeti Surrealisti Portoghesi, editado em Turim, pela Einaudi, em 1971. O autor é "Antonio Trabuchi", que conhecemos também como Antonio Tabucchi, aquele que escreveu ao menos duas pérolas irretocáveis: Noturno indiano e Sonhos de sonhos. "Antonio Trabuchi". Como fez Compagnon, que tirou de uma "gralha" em um livro de Borges toda uma densa reflexão sobre a citação e a intertextualidade, também aqui talvez seja possível extrair alguma lição sobre o equívoco, sobre a ironia das atribuições errôneas e sobre a equivocidade inerente a todo acontecimento (ou a feição acontecimental - aquilo que cai, abruptamente - de todo equívoco), que faz, através do riso ou do espanto ou de ambos, rever posições.   
2) Pois não é precisamente isso que está em questão quando se fala em Fernando Pessoa? O equívoco, o outrar, o tornar-se outro? Seabra e Tabucchi se encontram ao redor desse "Trabuchi", autor de um Pessoa surrealista, primeira face de um Tabucchi posterior, mais inventivo, mais ficcional. "Trabuchi" como heterônimo paródico de Tabucchi, perdido na Bibliografia de um livro de 1974, essa Bibliografia que é também um desdobramento paródico do Baú de Pessoa, repositório enigmático de heterônimos. "Trabuchi" também desencadeia uma espécie de dinâmica detetivesca, de busca pelos rastros perdidos do trabalho crítico, suas fissuras e as potencialidades de sentido inerentes a essas fissuras.   
3) Mas essa dinâmica detetivesca é invertida com relação ao modelo clássico: pois não há uma cena do crime que leva à busca pelas pistas; o que há, em primeiro lugar, é a própria pista, e só a pista, tudo que existe é a pista, "Trabuchi", que leva, retrospectivamente, anacronicamente, a uma cena do crime - que é, aliás, completamente ficcional, fantasiosa, delirante. Se a cena do crime é o equívoco de Seabra, então a cena do crime é também sua própria pista, seu próprio rastro - "Trabuchi" é, simultaneamente, o próprio crime e o indício do crime, o signo que pode ser lido e que pode levar em direção a um espaço exterior ao crime. Esse espaço exterior ao crime pode ser a obra de Tabucchi, mas não somente a obra de Tabucchi, mas a obra de Tabucchi sobre Pessoa - pois agora Tabucchi é o ortônimo de seu heterônimo, "Trabuchi".

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Alegoria e filiação

Paris, 1923: Joyce, Pound, John Quinn e F. M. Ford
1) Coetzee, em um dos volumes de suas memórias, Juventude, relata sua escolha de dois precursores: T. S. Eliot e Ford Madox Ford, em especial este último, que é objeto dos estudos de pós-graduação do narrador. Talvez Coetzee esteja, como de costume, acumulando camadas de referenciação estética e histórica em uma mesma imagem - isso porque é inegável que Ford Madox Ford é fundamental para a Bildung pessoal do narrador de Juventude, mas o foi também, factualmente, para outros escritores, como Ezra Pound. 
2) Foi Ford quem levou Pound até os romances de Stendhal e Flaubert, e o exemplo desses dois romancistas, assim como o de Joyce (com quem Ford conviveu em Paris), influenciou profundamente a escrita de The Cantos (Marjorie Perloff, O momento futurista, Trad. Sebastião Uchoa Leite, EDUSP, 1993, p. 91-92; Herbert Schneidau, Ezra Pound: The Image and the Real, Louisiana State University Press, 1969, p. 3-37). Ford escreveu romances a quatro mãos com Joseph Conrad, publicou a nata dos modernistas em suas revistas, primeiro The English Review e depois The Transatlantic Review. Ford também ganha destaque nas memórias de Hemingway, A Moveable Feast.
3) Diante disso, é possível imaginar que na evocação de Ford Madox Ford, Coetzee esteja evocando também, ficcionalmente, a própria dinâmica da evolução literária e de um sistema de filiação que daí pode decorrer. Um gesto figural, para dizê-lo com Erich Auerbach, ou seja, F. M. Ford como uma densa partícula de significação que leva simultaneamente à sua condição de sujeito histórico, personagem da história da literatura, e à sua condição de metonímia do desejo de Bildung - sendo Ford Madox Ford a parte e a Tradição o todo.
*
É importante ressaltar que esse raciocínio não seria possível sem A infância de Jesus, romance em que Coetzee incorpora o alegorismo e o raciocínio figural como procedimento - permitindo, consequentemente e retrospectivamente, a releitura de sua obra a partir desse deslocamento de perspectiva (e aqui Coetzee repercute em chave menor a tese de Eliot - "Tradição e talento individual" - de que a obra-prima reorganiza toda a tradição prévia).

terça-feira, 13 de agosto de 2013

O retrato do bufão Gonella

1) A história do bufão Gonella é bizarra: um dia, tentando curar o Soberano de Ferrara de uma febre persistente, Gonella o empurra no rio, sem aviso; mesmo reconhecendo a boa intenção do gesto, o Soberano manda prender Gonella e, de brincadeira, o condena à morte - todos sabem da brincadeira, menos Gonella, que, quando levado ao cadafalso, com um capuz na cabeça, recebe uma balde de água fria e não o corte no pescoço que esperava do carrasco; mas o susto leva o bufão à morte de qualquer forma.
2) O Soberano, conta Carlo Ginzburg, aproveita que Jean Fouquet estava na região - havia sido contratado para fabricar máquinas de guerra - e pede que realize o retrato de seu querido bufão. Aí começam os problemas para o artista: como conciliar a homenagem pretendida depois da morte do bufão com sua atividade em vida - trata-se, no fim das contas, de uma espécie de aporia, de double bind, de dissonância cognitiva. Segundo Ginzburg, Fouquet resolve parte da questão utilizando um gesto que era muito comum na pintura do século XIV ao século XVI: o busto de Cristo enquadrado, espremido, com o rosto caído para o lado, a Imago Pietatis.
3) "Existe uma semelhança tipológica inegável" entre as imagens de Cristo e a de Gonella, escreve Ginzburg, que especula também em torno da possibilidade da história da morte de Gonella ecoar também aquela de Cristo, ridicularizado como "rei dos judeus". Ao cruzar os braços de Gonella, colocando-o enquadrado e espremido, além de posicionar o rosto em direção ao ombro (João 19, 30), Fouquet evocaria não apenas uma representação pictórica tradicional de Cristo, mas também uma relação possível entre as duas histórias: "a dupla alusão iconográfica", escreve Ginzburg, "rastreável no quadro de Fouquet poderia ser ligada à narração, mais ou menos feita de invenção, da morte de Gonella: a história trágica de um bufão ridicularizado" (Ritratto del buffone Gonella, Modena: Franco Cosimo Panini Editore, 1996, p. 34). 

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Os bufões

1) Uma consequência curiosa das Cruzadas foi a introdução do bobo da corte - ou bufões - nos salões da realeza europeia. A ideia do louco integrado ao sistema do poder vem das cortes do Oriente, mas também tem raízes bem mais profundas, estruturais. Todo sistema de poder parece incluir em sua operação também o elemento grotesco, absurdo, que questiona e problematiza a superfície polida do poder. Mas esse elemento estranho é mantido sob controle, administrado em doses homeopáticas, visualizado em miniatura. O bufão representa a massa amorfa e desconhecida que está do lado de fora, tornando-a, com sua presença, acessível aos sentidos (como os "selvagens" levados à Europa na época dos "descobrimentos"). O bufão encena o povo e, ao mesmo tempo, assegura a distância.
2) Essa convivência tensa entre o poder estabelecido e a estranheza está no centro do prefácio de Victor Hugo a sua peça Cromwell, o tratado que ficou conhecido como Do grotesco e do sublime. Não é por acaso que o modelo de Hugo é Shakespeare, que usou muito as potencialidades dramáticas do bufão, que justamente por seu caráter ex-cêntrico tem direito ao uso mais livre da linguagem - a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria. E a questão do idiota na história da literatura, como mostrei em outro lugar, abrange desde Flaubert até Zizek. 
3) Tudo isso vai desaguar num pequeno livro que Carlo Ginzburg publica em 1996, intitulado Jean Fouquet: Ritratto del buffone Gonella. Trata-se não apenas da história do retrato pintado por Fouquet em fins da primeira metade do século XV, mas sobretudo como o pintor chegou ao tema, que tipo de padrões formais antigos tinha em mente quando pensou a pose do bufão, a quem se destinava o quadro e por que razões a identidade do pintor foi questionada por tanto tempo. A centralidade pitoresca que o bufão Gonella alcançou num período muito específico da história da cidade de Ferrara serve a Ginzburg como mote para uma reflexão que vai desde os aspectos morfológicos do quadro (os tecidos, o sorriso, o olhar) até sua contribuição possível para o debate sobre os contatos entre o sul e o norte da Europa no Renascimento.    

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Thomas Bernhard, poema


THOMAS BERNHARD

Dediquei-lhe um poema, há mais

de dez anos, para o qual certamente

se estaria nas tintas, se o lesse. É

um dos raros escritores que conseguiu

a difícil lucidez de detestar a pátria, essa

obrigatória e durável fonte de equívocos

e mal-entendidos. Por isso

ele gostava de passar temporadas

em Portugal, não pelo mar, nem

pela comida, nem pelos modos

amigáveis para turistas, mas sim

porque podia escutar uma língua

sem ter de entendê-la.

Inês Lourenço. Logros consentidos. Lisboa: &etc, 2005, p. 42.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Os bichos

Em 17 de agosto de 1945, uma sexta-feira, é lançada A revolução dos bichos de George Orwell, sua Fazenda, sua reconstrução alegórica e ficcional dos campos totalitários, dos laboratórios de domesticação política do ser humano. Um livro sobre o viver-junto - primeiro na cúpula do poder, e depois no campo de concentração que isola aqueles que não servem ao poder. Um livro que, ao pensar jocosamente nos limites porosos entre homens e animais, apresenta uma reflexão muito sutil e precisa sobre esse evento social que é o culto da personalidade, a escolha (imposição) de um líder - o macho-alfa da manada, o guia, o comandante, Stalin, que no livro de Orwell é o porco, mas não é qualquer porco, é o porco chamado Napoleão (o grau zero do culto da personalidade). 
*
Pois é rigorosamente no ano seguinte, 1946, que sai a Carta sobre o humanismo de Heidegger, tão próxima e ainda assim tão distante da Revolução de Orwell, da Fazenda de Orwell. É Sloterdijk quem melhor renomeará essa Carta de Heidegger aproximando-a, finalmente, da dimensão do viver-junto alcançada por Orwell - isso porque as Regras para o parque humano são justamente as regras para a convivência no interior da Fazenda, o programa totalitário de domesticação, de conformação. Dois escritores tão diferentes, com propósitos e origens tão díspares, abordam o mesmo tema ao mesmo tempo e usando o mesmo instrumental: humanismo, animalidade, alegoria.