quinta-feira, 23 de maio de 2013

O instante da minha morte

1) Há uma passagem de Demeure: fiction et témoignage em que Jacques Derrida, ao comentar Maurice Blanchot, fala de Descartes. Derrida está comentando a frase: estou falando francês, uma frase que, segundo ele, está para além da experiência, da narração ou do discurso, porque é um ato, é, de certa forma, "a essência do testemunho". E o Discurso do método de Descartes oferece um teste disso, escreve Derrida: pois Descartes escolheu escrever em francês para que "até as mulheres o pudessem ler", uma arguta estratégia de sobrevivência (assim como o larvatus prodeo, assim como a progressão mascarada de Descartes, que o salvou da fogueira da Inquisição). E ao traduzir o Discurso para o latim, o que fez o tradutor? Cortou a fala de Descartes, o "testemunho de Descartes" segundo Derrida, já que, depois da intervenção do tradutor, Descartes já não estava mais "falando em francês" e a passagem tornava-se, portanto, dispensável. 
2) Essa é apenas uma digressão na exposição de Derrida, cujo centro é Blanchot, cujo centro é, mais especificamente, um conto de Blanchot chamado "O instante da minha morte", L'instant de ma mort. Blanchot passou seus últimos 30 anos de vida recluso, vivendo sozinho em Le Mesnil-Saint-Denis, pequena cidade na região de Île-de-France. L'instant de ma mort foi o último relato publicado por Blanchot, que a partir de 1994, ano da primeira edição, expressou-se apenas por reuniões de fragmentos e textos circunstanciais de intervenção política (há uma tradução ao português desse conto, feita por André Telles, publicada na edição 6 da revista Serrote).
3) Estar e não estar, projetar-se como um outro no passado e reconhecer a si próprio como um outro de si no presente - eis o problema do testemunho no conto de Blanchot "traduzido" por Derrida em seu comentário. A situação do conto é extrema: fala da experiência de Blanchot na II Guerra, ao quase ser assassinado pelos nazistas - ele estava diante de um muro e diante das armas e, de repente, conseguiu escapar (como Dostoiévski em sua sentença de morte em 1849, quase 100 anos antes do "instante da morte" de Blanchot).     

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Lévi-Strauss, 1962

1) E onde estava Claude Lévi-Strauss em 1962, o ano da morte de Bataille e Faulkner, o ano em que Susan Sontag escreve sobre Freud em seu diário? Em 28 de junho de 1962, Lévi-Strauss estava em Genebra comemorando o 250º aniversário de nascimento de Jean-Jacques Rousseau. Pois bem, Sontag cita Freud em 1962; no ano seguinte, ao escrever seu ensaio sobre Lévi-Strauss, aproxima Tristres trópicos de A interpretação dos sonhos; reforça, além disso, a dívida de Lévi-Strauss com Marx (sua releitura contínua do 18 brumário, etc), dívida essa que é expressa abertamente em um parágrafo de Tristres trópicos - parágrafo esse que termina precisamente com uma referência elogiosa a Rousseau (Marx teria continuado aquilo que Rousseau havia apontado, escreve Lévi-Strauss).
2) Se o tom que Sontag reserva a Lévi-Strauss é o tom da admiração, exaltando a dimensão heroica de suas descobertas e de sua criatividade intelectual, o tom que Lévi-Strauss reserva a Rousseau é certamente análogo. Rousseau "concebeu, desejou e anunciou a etnologia, que ainda não existia, um século antes de seu surgimento", escreve Lévi-Strauss, e continua: "a dívida da etnologia para com Rousseau aumenta na medida em que, não contente em ter situado com extrema precisão uma ciência ainda por surgir, ele preparou para o etnólogo, com sua obra, o reconforto fraterno de uma imagem na qual ele mesmo pode se reconhecer e que o auxilia a melhor entender a si mesmo, não como pura inteligência contemplativa, mas como agente involuntário de uma transformação que se opera através dele".
3) A "vontade heroica automutiladora" que Sontag encontra em Freud, e que transmite não só ao seu diário mas também à sua rotina de escritora, estará também em "O antropólogo como heroi", o ensaio sobre Lévi-Strauss. E nada disso é estranho ao próprio Lévi-Strauss em sua leitura de Rousseau: "para poder se aceitar nos outros, é preciso antes recusar-se em si mesmo, e é a Rousseau que devemos a descoberta desse princípio". E é curioso que Lévi-Strauss nesse ponto coloque Rousseau contra Descartes - pois a filosofia, "partindo do Cogito", é sempre "prisioneira das pretensas provas do eu", pois "Descartes crê passar diretamente da interioridade de um homem para a exterioridade do mundo, sem ver que entre esses dois extremos", e aí entra a lição de Rousseau, "estão as sociedades, as civilizações, ou seja, mundos de homens" (Lévi-Strauss, "Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem", Antropologia Estrutural Dois, Trad. Beatriz Perrone-Moisés, Cosac Naify, 2013, p. 45-55).   

sábado, 18 de maio de 2013

Sontag e seus diários, 3

1) Em "O antropólogo como heroi", seu ensaio sobre Lévi-Strauss, Susan Sontag não apenas faz ecoar motivos de seus diários - como a passagem sobre a vontade automutiladora de Freud - como também enfatiza o caráter "confessional" de Tristes trópicos, um dos livros de Lévi-Strauss que ela comenta. Sontag cita a conhecida frase de Lévi-Strauss: "raras vezes dedico-me a enfrentar um problema de sociologia ou de etnologia sem previamente revigorar minha reflexão com algumas páginas do 18 de brumário de Luís Bonaparte ou da Crítica da economia política". (tradução Rosa Freire d'Aguiar, Cia das Letras, 1996, p. 55). Em seu ensaio, Sontag busca uma proximidade com Lévi-Strauss a partir da exposição de suas predileções e, principalmente, o fato de que tais predileções são apresentadas em momentos de sua escritura que de certa forma "traem" a escritura técnica do antropólogo.
2) Tal como no diário: a tensão entre a vivência, a reflexão e o aprendizado, no interior de uma linguagem tensionada, por sua vez, no limite do abandono (ou seja, ali onde ela se mostra apenas o suficiente para reportar). É importante notar que, no parágrafo anterior ao da frase citada por Sontag, Lévi-Strauss fala de Freud, da psicanálise e da relação de seu método com aquele da geologia. E a frase sobre Marx continua da seguinte forma: "Não se trata de saber se Marx previu com acerto este ou aquele desdobramento da história. Seguindo-se a Rousseau, Marx ensinou que a ciência social constrói-se tão pouco no plano dos acontecimentos quanto a física a partir dos dados da sensibilidade: a meta é construir um modelo, estudar suas propriedades e suas diferentes formas de reação no laboratório, para em seguida aplicar essas observações à interpretação do que ocorre empiricamente e que pode estar muito distante das previsões".
3) Tristes trópicos, escreve Sontag em seu ensaio, "é um livro intensamente pessoal, como Ensaios de Montaigne e Interpretação dos sonhos de Freud, é uma autobiografia intelectual, uma história pessoal exemplar na qual é elaborada toda uma visão de condição humana, toda uma sensibilidade". E duas páginas adiante: "a antropologia, para Lévi-Strauss, é um tipo de disciplina intelectual intensamente pessoal como a psicanálise". As camadas geológicas da escritura e da vida de Sontag partem de um casamento desfeito e alcançam um livro conjunto sobre Freud, e daí para Lévi-Strauss e, dentro deste, os elementos que indicam as camadas geológicas do antropólogo e da antropologia como disciplina - e aí retorna Freud, que já estava desde o princípio e que certamente auxiliou a identificação de Sontag com Lévi-Strauss, mas também Marx e Rousseau.    

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Sontag e seus diários, 2

Edição dos diários de Gide usada por Sontag
1) É curioso que Sontag se ocupe tanto de André Gide em seus primeiros anos de leitora. Em  setembro de 1948, com quinze anos de idade, ela escreve: "estou mergulhando em Gide outra vez", ênfase no outra vez, "que clareza e precisão! Sem dúvida, isso vem do próprio homem, que é incomparável - toda a sua ficção parece insignificante, ao passo que A montanha mágica é um livro para toda a vida". Dias depois, Sontag comenta sua leitura dos Diários de Gide: "terminei de ler esse livro às duas da madrugada do mesmo dia em que o comprei... Gide e eu alcançamos uma comunhão intelectual tão perfeita que chego a sentir as dores de parto próprias de cada pensamento que ele dá à luz!".
2) Esse trágico paradoxo do diário, que está em Gide, que está em Paul Valéry e seus Cadernos, ou seja, essa obliteração da vida em direção à escrita, essa canalização da "realidade" em direção à "irrealidade" do relato privado (movimento que Blanchot, em O livro por vir, ressaltou em sua ousadia, em seu "estranhamento" do viver na e pela literatura). Em O mal de Montano, Vila-Matas comenta os Diários de Gide: "conta a história de alguém que passou a vida tentando escrever uma obra-prima e não conseguiu", mas, paradoxalmente, "talvez esse grande livro seja o diário", "onde refletia a busca cotidiana dessa obra-prima".
3) "Talvez com a exceção de Paludes", escreve ainda Vila-Matas, "o resto da obra de Gide é, hoje em dia, bastante ilegível", "o diário, por sua vez, é um cume literário, um dos grandes diários de escritor que existem". Um diário que durou sessenta e três anos - Gide inclusive estava vivo quando a menina Susan Sontag nele mergulhou (ele faleceu em 1951). Mas é importante notar a medida que Sontag usa para avaliar Gide: Thomas Mann e A montanha mágica. No número 11 da revista Serrote foi publicado o relato de Sontag sobre sua visita a Mann, em dezembro de 1947. A personalidade do escritor alemão lhe pareceu banal, não condizente com a enormidade da obra. Gide, por outro lado, não escrevia uma ficção à altura de sua "vida", aquela vida que ele tão habilmente transmitiu aos seus diários. 

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Sontag e seus diários, 1

Breve trecho das pernas de Susan Sontag sob sua mesa de trabalho
1) Susan Sontag em seus diários: sempre fazendo listas de leituras, de obras a comprar, de livros emprestados, de autores, filósofos e romancistas a dar conta, nomes de livros e filmes riscados, indicando que foram lidos ou vistos e, principalmente, muitos comentários e acréscimos - Sontag lia a si própria, lia seus apontamentos, corrigia, ressaltava, reforçava. Listas de palavras, listas de nomes, listas das melhores atitudes em situações específicas. Livros de literatura apenas lançados ao lado dos Ensaios de Montaigne, ou de tratados de filosofia, ou obras historiográficas sobre Lutero ou sobre Cartago.
2) O método onívoro sempre esteve com ela, desde muito cedo - talvez uma tentativa de estar sempre armada, sempre preparada para qualquer situação, para qualquer lugar (mudanças foram comuns na infância). Nos ensaios de Contra a interpretação, por exemplo, livro que reúne seus escritos do ínicio da década de 1960, é difícil encontrar algum que não comece com o estabelecimento de uma lista rigorosa daquilo que o artista em questão produziu até o momento. Isso acontece quando Sontag escreve sobre Cesare Pavese, Robert Bresson, Godard, Resnais, Camus e, como apontado anteriormente, também em seu texto sobre Claude Lévi-Strauss, "O antropólogo como heroi".
3) Sontag não é digressiva, muito pelo contrário: ela estabelece um campo sólido de referências a partir das quais pode levantar suas hipóteses e marcar seus juízos (parte do apelo de seus ensaios está justamente em suas frases diretas, como "A grande arte da reflexão não é frígida", ou "A maior parte da produção intelectual de nosso tempo luta com o sentimento do desamparo"). Método que ela encontra também em Lévi-Strauss, e que comenta em seu ensaio. E, ao mencionar Freud (e também Marx) como referência para Lévi-Strauss, Sontag também indiretamente reforça sua própria filiação, acrescentando mais uma camada a essa conturbada mescla de autobiografia, formação estética e reflexão filosófica que abarca não só a escrita dos diários, mas a relação destes com os ensaios que ela escrevia na mesma época.      

domingo, 12 de maio de 2013

Sontag e seus diários

1) Em uma das entradas de seu diário, naquela que corresponde ao sete de setembro de 1962, o ano em que morreram Faulkner e Georges Bataille (com dois dias de diferença), nesse sete de setembro, portanto, Susan Sontag escreve em seu diário algumas notas sobre a força de vontade, grande motivo de todo o seu diário, toda sua vida e todos seus escritos, e Sontag escreve que "todos os heróis de Freud são heróis da repressão", e dá os exemplos de Moisés, Dostoiévski e Leonardo - "é isso o que significa, para ele, ser heroico", completa Sontag.
2) E a anotação de Sontag continua: "Trabalho e diversão. O ego versus o corpo preguiçoso. Freud era um formidável paladino da vontade 'heroica' automutiladora. A psicanálise que ele criou é uma ciência da complacência com o corpo, com os instintos, a vida natural - na melhor hipótese" (Diários, 1947-1963, tradução de Rubens Figueiredo, Cia das Letras, 2009, p. 323). "O ego versus o corpo preguiçoso": tema cartesiano por excelência. É importante também lembrar que para Sontag, nessa época, Freud não era apenas uma referência entre outras: em 1958, Sontag se divorcia de Philip Rieff, com quem havia colaborado para a escrita de Freud: The Mind of the Moralist (em português Freud: pensamento e humanismo, tradução de Silvana Borin Mirachi, Interlivros, 1979), que foi lançado em 1959 apenas com o nome de Rieff.
3) Expressões importantes para Sontag, que de certa forma condensam todo seu desejo de saber, de saber cada vez mais, de nada considerar como alheio: "repressão", "heroico", "vontade heroica automutiladora". Persistir na leitura, na visão, na reflexão, na escritura, mesmo quando o corpo diz o contrário, ou recusa, ou fraqueja. Seus diários estão preenchidos por essa volúpia de compensar a inadequação (uma inadequação frequentemente imaginária, delirante) com força de vontade, comprometimento e disciplina. Esses detalhes devem ser articulados não apenas com as entradas dos diários e com os elementos biográficos, mas principalmente em suas repercussões na escritura crítica de Sontag - em 1963, por exemplo, no ano seguinte portanto, Sontag escreverá um ensaio sobre Lévi-Strauss com o sintomático título de "O antropólogo como heroi" (está em Contra a interpretação).    

terça-feira, 7 de maio de 2013

Flaubert, panorama, montagem

Panorama em construção, Paris, século XIX
1) Naquele artigo de Proust sobre Flaubert, comentado recentemente por aqui por conta da entrevista de Jean Echenoz, existe outro ponto interessante além da discussão sobre o uso de um advérbio em Herodíade. "Na minha opinião", escreve Proust, "a coisa mais bela da Educação sentimental não é uma frase, mas um espaço em branco". A forma como Flaubert, em última instância, lida com o tempo dentro da narrativa, é disso que fala Proust. A forma como Flaubert corta e monta os fatos, as imagens, as sensações e, através disso, faz ficção. Carlo Ginzburg também comenta esse procedimento de Flaubert em um ensaio reunido em Relações de força - intitulado justamente "Decifrar um espaço em branco".
2) Assim como acontece no El factor Borges de Alan Pauls - no qual um crítico hoje completamente esquecido, Ramón Doll, é resgatado em sua miopia e seu juízo de época revalorado -, também no ensaio de Ginzburg se apresenta uma discussão de uma resenha da Educação sentimental no "calor da hora". Em Pauls, Ramón Doll é aquele que denuncia Borges como um escritor de "segunda mão", a quem falta "criatividade". Em Ginzburg, quem retorna do arquivo é Édmond Scherer, que denunciou o romance de Flaubert como "excessivamente fragmentário" (o mesmo crítico, informa Ginzburg, escrevera sobre Baudelaire alguns meses antes, com igual incompreensão). Pois Scherer tocou em algo fundamental em Flaubert: a descontinuidade, a montagem, as elipses, a eloquência do silêncio, "os espaços em branco".
3) Talvez isso tenha relação com aquilo que foi dito acerca do "crânio de Flaubert" e seu desejo de tudo abarcar, de "saber de cor", de ver todo seu romance com um só olhar. Pois somente tal controle sobre a totalidade permite a decomposição radical que surge em sua ficção. A "fragmentação excessiva" de Flaubert só pode emergir da maníaca convivência e resolução do e com o todo. E Ginzburg frisa como isso se dá no estilo de Flaubert, em suas soluções formais - a dissolução de uma cena de sonho em uma abrupta chamada da realidade, a sobreposição entre o interior de uma peça e o exterior do boulevard, etc. Ginzburg cita as Passagens de Walter Benjamin, a parte sobre os panoramas, mostrando que o trabalho de montagem de Flaubert na ficção envolve também uma glosa daquilo que a técnica mostrava em seu tempo - a aceleração do tempo nos dioramas e nas fotografias.  

domingo, 5 de maio de 2013

O crânio de Flaubert

1) O crânio de Descartes, a razão, o método, o rigor - é em parte o que está em jogo na retomada que Beckett faz de Descartes. Captar o máximo de controle no momento em que ele se perde, o momento em que o controle sai do controle - por isso as associações, as digressões, o caos estruturado de Whoroscope. Mas talvez o projeto de rigor ficcional mais celebrado e minucioso ainda seja o de Flaubert: "Eu gostaria de ler com um só golpe de vista estas cento e cinquenta e oito páginas e captá-las em todos os seus detalhes com um só pensamento", escreve ele em carta de  22 de julho de 1852, comentando a realização de Madame Bovary.
2) Sempre em Flaubert esse desejo de tudo abarcar: "Depois de lhe encontrar, vou me dedicar a Sófocles, que eu quero saber de cor!", escreve ele em carta de 26 de outubro de 1852 para Louise Colet. "Um só golpe de vista", "saber de cor" - a percepção flaubertiana e a busca pela totalidade impossível, e ainda assim desejada, buscada, planejada. "O que me faz andar tão lentamente é que nada nesse livro é tirado de mim; jamais minha personalidade foi tão inútil para mim próprio. Tudo vem da cabeça. Se fracassar, terá sido um bom exercício", escreve Flaubert em carta de 6 de abril de 1853.  
3) Tudo vem da cabeça! A razão, o método, o rigor, o crânio de Flaubert. "Eu estou arrasado, o cérebro se põe a dançar no crânio", acrescenta Flaubert em 29 de junho de 1853. "Minha cabeça está pegando fogo", 12 de outubro de 1853 (Cartas exemplares, tradução de Duda Machado, Imago, 1993).

quarta-feira, 1 de maio de 2013

A marca do artista - Coetzee, Descartes

1) Na terceira de suas Meditações, Descartes apresenta provas da existência de Deus baseadas no princípio da causalidade, como a que afirma que só existindo realmente Deus - que seria a causa - é possível explicar a existência de um ser finito e imperfeito (o eu pensante para Descartes), porém dotado da ideia de infinito e de perfeição - e aqui surge o efeito da causa. Essa ideia estaria na mente do homem como "a marca do artista impressa em sua obra", escreve Descartes. Só a existência efetiva de Deus pode explicar a simples emergência da ideia de Deus na mente humana, defende Descartes.
2) No mesmo Diário de um ano ruim em que fala do larvatus prodeo de Descartes, Coetzee argumenta todo o contrário dessa ideia de Descartes sobre a existência de Deus. Trata-se do capítulo 17 das "Opiniões fortes", intitulado "Do Design Inteligente" - uma doutrina que postula a existência de uma inteligência maior por trás do universo e seus processos. "Não desejo me associar a isso", escreve Coetzee, "mas continuo a achar a evolução por mutação ao acaso e seleção natural não só pouco convincente como ridícula enquanto descrição de como surgem os organismos complexos". "Não me parece filosoficamente retrógrado atribuir inteligência ao universo como um todo", continua Coetzee, "em vez de apenas a um subconjunto de mamíferos do planeta Terra". O universo inteligente evolui com um propósito - mesmo que o intelecto humano não reconheça esse propósito (ou sequer a ideia bruta do que seria um propósito).
3) Segundo Coetzee, o intelecto humano é marcado por uma estranha combinação: "a combinação de insuficiência de percepção intelectual junto com a consciência de que essa percepção é insuficiente". Experimentamos assombro, "contração da mente, como diante de um abismo", sempre que tentamos compreender a origem do espaço e do tempo e "a natureza do entendimento em si". Se o intelecto teve sua evolução a partir de uma mutação progressiva, não seria lógico imaginar que com um pouco de esforço se poderia esboçar uma arqueologia desse mesmo intelecto? Mas não, o que se tem, segundo Coetzee, é o abismo. "Um aparato intelectual marcado por uma consciência de sua insuficiência é uma aberração evolucionária", finaliza ele. Tal consciência, que para Descartes é a assinatura do artista, Coetzee vê como aberração.