terça-feira, 23 de abril de 2013

Segunda lição de língua morta

1) Estamos no trecho de Verão, a biografia que Coetzee escreve de si tomando-se como morto, o trecho de Verão que corresponde a Margot, prima de John Coetzee. O biógrafo, Vincent, estrutura uma narrativa baseada num depoimento gravado. Margot e John estão conversando sobre línguas: "E xhosa? Você fala xhosa?", ela pergunta. "Meu interesse é pelas coisas que nós perdemos, não pelas coisas que conservamos", responde John, e continua: "Por que eu deveria falar xhosa? Milhões de pessoas já falam. Não precisam de mim". Meu interesse é pelas coisas que nós perdemos.
2) A conversa continua: "Depois de ter aprendido hotentote nos seus velhos livros de gramática, com quem você pode falar?", a prima pergunta. "Quer que eu conte?", responde John, enigmático. "O sorrisinho se transformou em alguma outra coisa, alguma coisa tensa e não muito boa", observa o narrador (que é Vincent, o biógrafo que não existe, que é invenção de Coetzee; uma observação abertamente ficcional, pois Margot nada disse sobre o sorriso de John e Vincent não tinha acesso a essa cena). "Quero, conte. Responda", diz Margot. E John responde: "Com os mortos. Dá para falar com os mortos. Que de outra forma - ele hesita, como se as palavras pudessem ser demais para ela e mesmo para ele -, que de outra forma são lançados no silêncio eterno" (Verão, tradução de José Rubens Siqueira, Cia das Letras, p. 112).
3) Meu interesse é pelas coisas que nós perdemos, afirma Coetzee ao ocupar o lugar do morto. É um pouco mais do que o autor como aquele que ocupa uma posição na qual não cessa de desaparecer - como em Blanchot e depois em Foucault ("O que é um autor?", e também na morte do autor, de Barthes). Também só acompanha em parte o "autor como gesto" de Agamben, que vive na oscilação da presença e da ausência. Na lição de língua morta de Coetzee, o autor entra em um jogo de desaparição que já está na linguagem, um jogo que o precede e que continuará sem ele. A própria teimosia do ser humano ao insistir em se ligar ao que está perdido é marca da amplitude desse jogo - e está em Age of Iron, com a professora de latim; está em Verão, com John Coetzee e o hotentote (ou khoi, como ele também chama); e com David Lurie apegado a sua ópera no deserto.      

Nenhum comentário:

Postar um comentário