terça-feira, 30 de abril de 2013

Beckett: Descartes

1) Ainda o crânio de Descartes, o cogito que Paul Valéry segura em suas mãos, como uma relíquia, um talismã, que contamina de certa forma a leitura de Monsieur Teste, cabeça e texto, razão e método. É Eugene Webb, em livro de 1974 (The Plays of Samuel Beckett), quem fala do cenário de Fim de partida como o interior do crânio "de um indivíduo que fechou seus olhos para o mundo". A desolação exterior de Godot é agora transposta para uma vivência claustrofóbica, solipsista. Mas essa perspectiva se espalha por toda a obra de Beckett, incluindo toda uma vertente de estudos que o aproximam de Descartes - tudo começou com Samuel Mintz, Beckett's Murphy: a Cartesian Novel (1959). 
2) Parece que Beckett gostava de jogar com as ideias de Descartes, tomando sua exposições didáticas ao pé da letra e construindo situações absurdas. Em outras palavras, Beckett estava interessado em ler o Discurso do método como ficção - uma ficção na qual a retórica cria a realidade. Se lembrarmos de Dias felizes, por exemplo, peça de Beckett de 1961, veremos Winnie enterrada até o pescoço, mostrando apenas sua cabeça - uma imagem possível da separação cartesiana entre mente e corpo (mas Beckett vai além, ele suprime o corpo, dissolve o corpo, o que é impensável para Descartes, que via a máquina humana como uma articulação entre mente e corpo).
3) É possível inclusive dizer que, para Beckett, tudo começou com Descartes. Para Beckett, tudo começou com Whoroscope, um longo poema escrito em inglês, mas publicado em Paris por The Hours Press (um pequena casa editorial que contava com um concurso literário, que naquele ano foi vencido por Beckett). O personagem principal é Descartes (Beckett avisa nas notas), que medita sobre o tempo (tema do concurso) em algo que lembra um fluxo de consciência mesclado a comentários culinários, geográficos, teológicos e retóricos (e pode ser lido aqui). Entre outras aparições ilustres no poema de Beckett, está Frans Hals (Who’s that? Hals?/ Let him wait), o pintor responsável por aquele retrato de Descartes que Paul Richer usou como modelo para sua "reconstrução em camadas". É de notar também que Whoroscope é produzido por Beckett simultaneamente ao seu estudo sobre Proust, que é, também ele, um livro sobre o tempo.
     

domingo, 28 de abril de 2013

Valéry, marinheiro

1) Não é possível dizer que foi por ter segurado o crânio de Descartes que Paul Valéry pôde escrever Monsieur Teste - história e personagem já pertenciam ao imaginário de Valéry muito antes da literal emergência do crânio das águas, em 1910. Na primeira linha de seu ensaio sobre Valéry (1931, em homenagem ao seu sexagésimo aniversário), Walter Benjamin afirma que o poeta "outrora desejava ser um comandante naval", um marinheiro. "Elementos desse sonho juvenil ainda podem ser rastreados em sua poesia", escreve Benjamin. Não é curioso que esse poeta que desejava ser marinheiro pegue nas mãos o crânio de Descartes depois de devolvido pelas águas? Não é curioso que no mesmo livro em que Sebald fala do crânio de Thomas Browne e da presença deste e de Descartes no quadro de Rembrandt, ou seja, em Anéis de Saturno, também aí Sebald comente a vida de Joseph Conrad e seu juvenil desejo de também ele se tornar marinheiro? (não esqueça do encontro de Conrad com Valéry em 1922).
2) Para Benjamin, o marinheiro-Valéry permanece no poeta-Valéry não apenas pelas razões mais óbvias de temas e nomeações (O cemitério marinho), mas pela verticalidade do mergulho, pela pressão, pela condensação, pelo rigor (Valéry como o caçador dos detalhes - curioso que Georges Didi-Huberman fala de Warburg como "detetive do mar", "pêcheur de perles", pescador de pérolas; e mais: parte de sua inspiração vem de um ensaio de Hannah Arendt sobre Benjamin). E ainda para Benjamin o monsieur Teste é o exemplo perfeito para essa visão de Valéry: o puro pensamento, a pura cabeça, o puro raciocínio, a depuração da linguagem em um sistema de equivalências rigorosas (mas que, curiosamente, só ganham vida na associação livre da digressão).
3) E Benjamin, evidentemente, é preciso ao demarcar o exercício de Valéry como uma prospecção radical do legado de Descartes. Larvatus prodeo - mascarado também avança Valéry e Teste: no fragmento "Para um retrato de Monsieur Teste", Valéry escreve que ele é "o Demônio dos possíveis ordenados" (relembrando a vocação demoníaca do larvatus), que "entra e impressiona todos os presentes com sua 'simplicidade'", "alma oculta" de um "teatro mental" (Monsieur Teste, tradução de Cristina Murachco, Ática, 1997, p. 110-113). A consciência como teatro, a identidade como representação, multiplicação, tarefa sem fim. Já não foi dito que o cenário de Fim de partida, de Beckett, se assemelha muito com o interior de um crânio, com suas duas janelas altas servindo como olhos?

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Digressão: Descartes

1) A citação de Coetzee em Diário de um ano ruim leva a Descartes - larvatus prodeo, mascarado, dissimulado eu avanço (em direção ao futuro mas também em direção ao passado, principalmente ao passado, pois Descartes escreve essas palavras quando muito jovem, quando busca sua progressão diante de um cenário tradicional, estabelecido). A imagem acima, curiosamente, não é um comentário ou uma "representação artística" dessas palavras. Tem um objetivo bem mais direto: provar que um crânio encontrado em um museu depois de uma enchente era, de fato, o crânio de Descartes. 
2) Em 1821, o crânio de Descartes foi descoberto por um francês na Suécia e levado a Paris, onde permaneceu no Museu de História Natural. Em janeiro de 1910, a cidade sofre com uma enchente, que atinge também o museu: todo tipo de relíquia flutua indistintamente pelos salões. Onde está o crânio de Descartes? Com o recuo das águas, aparece uma caveira, sem qualquer tipo de identificação. Paul Richer, assistente do célebre médico Charcot, especialista em arte e anatomia (quantas vezes não deve ter cruzado com Freud pelos corredores), surge com uma ideia: a partir do retrato de Descartes pintado por Frans Hals, ele faz uma projeção da ossatura do filósofo e constrói sua escultura em camadas. O plano dá certo e a autenticidade é confirmada (numa apresentação com ampla cobertura da mídia, em janeiro de 1913). A escultura de Richer transforma o rosto de Descartes em máscara, em prótese, em jogo de dissimulação - tal como ele queria, larvatus prodeo, mas muito longe daquilo que buscava Richer.      
Frans Hals, retrato de Descartes, 1649
3) Em 1992, Sebald vai em busca do crânio de Thomas Browne, perdido em algum ponto do leste da Inglaterra. Está em Os anéis de Saturno: a imagem do crânio de Browne e a imagem da lição de anatomia pintada por Rembrandt - segundo Sebald, Browne estava lá e Descartes também estava lá. Acompanhavam a dissecação do corpo de um ladrão, a remoção das camadas. Somente depois de 1921, escreve Sebald, foi atendido "o repetido pedido da paróquia de St. Peter Mancroft de que o crânio de Browne lhe fosse devolvido". O que poderia ter escrito Sebald se soubesse também do crânio de Descartes, se tivesse buscado o crânio de Descartes assim como buscou o de Thomas Browne? Paul Valéry relata em seus Cadernos que teve em suas mãos o crânio de Descartes, em uma visita ao Museu de História Natural (Reino Virtanen, L'imagerie scientifique de Paul Valéry, J. Vrin, 1975, p. 124). Nada mais adequado ao criador do Monsieur Teste (cabeça, texto, ficção e máquina). 
Crânio de Thomas Browne

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Terceira lição de língua morta

Paul Richer, 1913
1) A linguagem é um tema fundamental para Coetzee - mas no sentido de uma operatividade e de uma consciência da linguagem como mediação, como problematização da vida. Está em seus ensaios (sempre citando no original, sempre cotejando as traduções), está em sua ficção e em suas intervenções (daí sua proximidade com Beckett, sua leitura técnica e acadêmica de Beckett na década de 1960). Na primeira metade do Diário de um ano ruim, há um capítulo que se chama "Do uso do inglês". Na segunda metade do mesmo livro, um capítulo nomeado "Da língua-mãe", no qual escreve: "às vezes tenho a inquietante sensação de que aquele que eu escuto não é aquele que eu chamo de eu; é mais como se alguma outra pessoa (mas quem?) estivesse sendo imitada, acompanhada, até arremedada. Larvatus prodeo". E mais adiante: "talvez todas as línguas sejam línguas estrangeiras, estranhas ao nosso ser animal". 
2) De novo o latim de Age of Iron - "larvatus prodeo", eu caminho mascarado, "título de uma obra breve de René Descartes, de 1618", afirma o tradutor José Rubens Siqueira em nota (curioso que a edição original não apresenta qualquer tipo de esclarecimento - Coetzee a pensou assim, uma interpolação inexplicada). Quanta História, densidade e erudição em duas palavras, como que jogadas no fim de um parágrafo. Porque essa máscara textual, essa citação, é já em si uma máscara, é um encobrimento já na ocasião de sua emergência - uma revelação que se dá coberta, escondida pela língua estrangeira, pela dificuldade de compreensão e leitura, que é justamente o que está em questão no comentário de Coetzee ("Da língua-mãe").
3) Larvata - "mascarada", do latim larva, larvae, máscara teatral, boneco, espantalho, espectro, demônio que se apodera das pessoas (Agamben, Infância e história). A interpolação de Coetzee em seu texto não só exemplifica a discussão (sou um estranho no uso da língua), como a presentifica, fazendo circular um fantasma, um espectro de anacronismo (o latim, a mensagem cifrada). O uso da língua como uma possessão - as línguas "estranhas ao nosso ser animal" -, como um boicote à natureza. A subversão parece já estar em Descartes, que transforma uma frase corriqueira (larvatus pro Deo, coberto, escondido diante de Deus) em uma frase de inquietude - larvatus prodeo, o eu dissimulado, capcioso (captio, pegar, armar, armadilha). Sutilezas profanatórias que eram muito apreciadas não apenas por Beckett, mas principalmente por James Joyce (os jesuítas, os rituais, as almas, os mortos, as línguas, as nações, Introibo ad altare Dei, etc).  

terça-feira, 23 de abril de 2013

Segunda lição de língua morta

1) Estamos no trecho de Verão, a biografia que Coetzee escreve de si tomando-se como morto, o trecho de Verão que corresponde a Margot, prima de John Coetzee. O biógrafo, Vincent, estrutura uma narrativa baseada num depoimento gravado. Margot e John estão conversando sobre línguas: "E xhosa? Você fala xhosa?", ela pergunta. "Meu interesse é pelas coisas que nós perdemos, não pelas coisas que conservamos", responde John, e continua: "Por que eu deveria falar xhosa? Milhões de pessoas já falam. Não precisam de mim". Meu interesse é pelas coisas que nós perdemos.
2) A conversa continua: "Depois de ter aprendido hotentote nos seus velhos livros de gramática, com quem você pode falar?", a prima pergunta. "Quer que eu conte?", responde John, enigmático. "O sorrisinho se transformou em alguma outra coisa, alguma coisa tensa e não muito boa", observa o narrador (que é Vincent, o biógrafo que não existe, que é invenção de Coetzee; uma observação abertamente ficcional, pois Margot nada disse sobre o sorriso de John e Vincent não tinha acesso a essa cena). "Quero, conte. Responda", diz Margot. E John responde: "Com os mortos. Dá para falar com os mortos. Que de outra forma - ele hesita, como se as palavras pudessem ser demais para ela e mesmo para ele -, que de outra forma são lançados no silêncio eterno" (Verão, tradução de José Rubens Siqueira, Cia das Letras, p. 112).
3) Meu interesse é pelas coisas que nós perdemos, afirma Coetzee ao ocupar o lugar do morto. É um pouco mais do que o autor como aquele que ocupa uma posição na qual não cessa de desaparecer - como em Blanchot e depois em Foucault ("O que é um autor?", e também na morte do autor, de Barthes). Também só acompanha em parte o "autor como gesto" de Agamben, que vive na oscilação da presença e da ausência. Na lição de língua morta de Coetzee, o autor entra em um jogo de desaparição que já está na linguagem, um jogo que o precede e que continuará sem ele. A própria teimosia do ser humano ao insistir em se ligar ao que está perdido é marca da amplitude desse jogo - e está em Age of Iron, com a professora de latim; está em Verão, com John Coetzee e o hotentote (ou khoi, como ele também chama); e com David Lurie apegado a sua ópera no deserto.      

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Lição de língua morta

1) Já na abertura de Age of Iron (romance que Coetzee publica em 1990) são postos em confronto dois mundos: o doméstico, interno, e o das ruas, externo, brutalizado. Coetzee levanta um problema de comunicação, de tradução, de contato. Quando a mulher - a narradora, que está morrendo de câncer e escreve uma carta de despedida a sua filha - encontra o mendigo diante da sua garagem ("Havia um cheiro forte à sua volta: urina, vinho doce, roupa mofada e mais alguma coisa também. Sujeira"), reage com rispidez e o expulsa.  
2) No dia seguinte, quando ele reaparece, a mulher lhe pergunta: "Como pode viver assim? Como consegue ficar jogado o dia todo sem fazer nada?". A resposta é inesperada: "Fez uma coisa que me chocou", escreve ela, "com um olhar direto, cuspiu um viscoso escarro grosso, amarelo, estriado pelo marrom do café, no concreto, junto aos meus pés". Cuspiu não em mim, ela pensa, "mas à minha frente, onde eu pudesse ver, inspecionar, pensar sobre isso". Era a sua palavra, escreve Coetzee, "o seu modo de falar", "uma palavra, inegável, de uma linguagem anterior à língua".   
3) Depois de algumas semanas de convivência - que é o tempo de duração do romance -, quando o relato (a vida) da narradora já está chegando ao fim, o mendigo já tem nome - Vercueil - e já mora com ela em sua casa. Ela já lhe contou sua vida - professora de latim na universidade. "O que é latim", ele pergunta. Uma língua morta, uma língua falada pelos mortos, ela responde. "Você poderia falar um pouco?", ele pergunta. E ela recita Virgílio. Mais tarde, Vercueil volta e pede que ela recite novamente. Ela faz. Ele pergunta: "Podia me ensinar?". Ela responde: "Poderia lhe ter ensinado. Poderia lhe ter ensinado a maioria das coisas romanas. Não tenho certeza quanto às gregas. Ainda posso ensiná-lo, mas não haveria tempo para tanta coisa". De um ponto ao outro: da "linguagem anterior à língua" até "uma língua falada pelos mortos". Entre uma coisa e outra, a ficção, o romance, unindo os pontos, fazendo a mediação entre a inarticulação da vida arcaica e o absoluto da morte, da suspensão do tempo. 

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Que tipo de animal ele era?

Van Gogh, Vaca deitada, 1883, detalhe
1) De tudo que fala Derrida sobre van Gogh retenho ainda a questão da multiplicidade, da variabilidade. Ser tudo, ser de tudo, ser em tudo - o artista como camponês, como sapato, como girassol, como peregrino, como mutilado. Há algo de inquieto em sua poética que o leva às mais variadas posições, mas que são costuradas a partir um conjunto de procedimentos (uma pulsão) que se repete (a pincelada, a ondulação, o choque das cores). O que hoje poderia se aproximar dessa postura é a escrita de Coetzee, numa espécie de atualização decantada da movimentação estética de van Gogh - sem arroubos, só a obsessão.
2) Que tipo de animal ele era?, pergunta outro Vincent, o biógrafo de Verão, aquele que vasculha a vida de um Coetzee já morto. "Ele não era nenhum tipo de animal", responde Julia, "e por uma razão muito específica: a capacidade mental dele e especificamente as suas faculdades de ideação [ideational faculties] eram superdesenvolvidas, à custa do seu ser animal". Talvez outra leitura seja possível: é justamente por conta de suas faculdades de ideação que Coetzee consegue se multiplicar - como mulher, como Defoe, como homem da fronteira do século XVIII, como animal, como Dostoiévski. Talvez essa capacidade seja reforçada pelo cultivo de uma personalidade tão equilibrada, de pouquíssimos desvios e sobressaltos.
3) É o que diz Julia: "o projeto de vida dele era ser gentil", afastar a interferência dos excessos, "direcionar tudo para a escrita, que consequentemente iria se transformar em uma espécie de exercício catártico sem fim". Ele tinha decidido que ia impedir impulsos violentos e cruéis em todos os campos da vida. Julia diz que John era "radicalmente incompleto". Para Coetzee, afirma Julia, escrever é "um gesto de recusa diante da época", uma inadequação, uma inquietude. Coetzee, finalmente, esse Coetzee de Verão, já morto, era compulsivo como van Gogh, "um trabalhador obsessivo". "Se eu ceder à sedução de não trabalhar, o que eu faria comigo mesmo? Que razão haveria para viver? Eu teria de me matar", teria dito Coetzee, afirma Julia. Há algo de perverso nessa multiplicidade tão rica e fascinante que só pode ser alcançada através de um apagamento, de uma negação, de um esvaziamento, de uma recusa veemente.     

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Outubro de 1977, 5

Jan van Eyck, O casal Arnolfini, 1434, detalhe
1) Blanchot escreve que "cada vez que o artista é preferido à obra, essa preferência, essa exaltação do gênio significa a degradação da arte, o recuo diante de sua potência própria". Exemplos: Mallarmé e Cézanne, que "não buscam a glória", "ambos são modestos, não voltados para eles mesmos mas para uma busca obscura". Cézanne "não exalta o pintor", escreve Blanchot, "e Van Gogh diz: não sou um artista, como é grosseiro até mesmo pensar isso de si mesmo. Digo isso para mostrar como acho tolo falar de artistas talentosos ou sem talento" (Blanchot, O livro por vir. Tradução de Leyla Perrone-Moisés, Martins Fontes, p. 287). O artista não é um indivíduo mais importante e mais visível do que os outros - pelo contrário, ele não cessa de desaparecer em sua obra (é interessante ver Coetzee, em entrevista recente, retomar essa ideia e declarar que recusa a ideia do "artista como um privilegiado capaz de dizer verdades").
2) Ainda nos rastros dos fantasmas dos sapatos de van Gogh e nas pegadas de Walser, mas agora a partir de Blanchot. É curioso que Derrida, em seu trabalho mais extenso sobre os "fantasmas" (Espectros de Marx, de 1993), abre a reflexão com um ensaio de Blanchot, "As três falas de Marx". Mas antes, ainda em La vérité en peinture, ainda que não cite Blanchot, Derrida está interessado nesse deslizamento tão blanchotiano dos fantasmas, essa disseminação da potência em diferentes registros, imagens e temporalidades - ou ainda, como se dá essa distribuição da potência, esse viver-junto da potência, para além dos nomes próprios e para além da cronologia (preocupações também de Valéry (1871-1945), contemporâneo de Walser (1878-1956).
3) Derrida recua até o quadro de Jan van Eyck, O casal Arnolfini - há um par de sapatos abandonado no canto, como que demarcando o espaço sagrado da união entre eles (uma cena que ecoa, segundo Derrida, o aviso de Deus a Moisés: tira tuas sandálias porque o local que pisas é sagrado, Êxodo, 3, 5). Derrida passa também por Jean-François Millet, pintor francês um pouco mais velho que van Gogh e que lhe sugeriu inúmeros motivos. Mas o foco do panorama está em Magritte e suas elaborações dos fantasmas dos sapatos de van Gogh - ainda a errância e o esvaziamento, mas com a adição das ciladas do desejo, do inconsciente e de sua linguagem metafórica e instável.  
Magritte, A filosofia na alcova, 1947

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Outubro de 1977, 4

1) Para Schapiro, van Gogh estava sempre por um fio - tudo que o ligava ao mundo era tênue e delicado, e da mesma forma funcionava a relação do artista com o mundo, com as pessoas que o cercavam, com os lugares que o acolhiam. Tudo era provisório e improvisado. A imagem dos sapatos diz respeito à errância e à inadequação, mas também diz respeito àquilo que era transitório para van Gogh - sua obra e sua vida. Nem van Gogh nem Walser pareciam preocupados com um legado, com uma herança, com o imperativo de trabalhar em direção à construção de uma Obra. 
2) Van Gogh e Walser pareciam mais interessados em dar conta de um desejo que se bastasse por si, que se resolvesse em sua própria emergência. Como nessa última caminhada de Walser, como nesse último conjunto de rastros, nessa última escritura que ele deixa com o próprio corpo, com o próprio peso, na terra - traços frágeis que o vento logo cobriu. O testemunho final do corpo como uma poética do menor.
3) Os pés na terra, a sensação de mobilidade, de transposição de fronteiras - tudo isso parece funcionar de forma muito semelhante tanto para van Gogh e Walser quanto para Sebald, por exemplo. Os pés e a caminhada como signos da deambulação angustiada, da desterritorialização. É assim que entende Schapiro, contra Heidegger (Heidegger é aquele que pôde ficar, escreve Derrida). Um inestimável ponto intermediário é dado por Ernst Jünger em seu romance Nos penhascos de mármore, de 1940. Em Jünger, a ligação com a terra (e com a comunidade) surge como festa e como rito, mas por trás disso está a iminência da destruição e da dissolução desse cenário (é essa faceta ambivalente da poética de Jünger que interessa Peter Sloterdijk em Crítica da razão cínica - para Sloterdijk, Jünger é "um trabalhador fronteiriço entre o fascismo e o humanismo estoico que escapa de etiquetas fáceis").    

domingo, 14 de abril de 2013

Outubro de 1977, 3

1) Derrida insiste no caráter fantasmático e espectral dos sapatos de van Gogh. Eles oscilam, no entanto, entre uma espectralidade da presença e outra da ausência, ou ainda, o sapato como o próprio espectro (em seu abandono, em sua materialidade literalmente vazia) ou o sapato como indício de um espectro ausente, externo (o sapato então como o resto da espectralidade, como um limiar ou umbral no qual se fecha o visível). 
2) Talvez seja possível ampliar esse campo de reflexão em direção a uma outra imagem, feita setenta anos depois. Talvez seja possível incluir a desoladora imagem da última caminhada de Robert Walser, feita no dia de Natal de 1956. As marcas dos sapatos na neve, o rastro da progressão do corpo até o ponto em que tombou, a insolúvel ambivalência entre a presença e a ausência. A imagem de Walser atualiza tanto os aspectos contraditórios da espectralidade quanto a vocação do artista como peregrino - elementos que já estão nos sapatos de van Gogh. Sebald já deu conta dessa tensão temporal que percorre a imagem dos passos de Walser, mas sem indicar diretamente que essa talvez seja a imagem mais emblemática da própria obra de Walser e de sua postura como artista: uma presença menor, subalterna, em baixa frequência com relação ao mundo, ao exterior (termos semelhantes àqueles que utiliza Meyer Schapiro em seu texto sobre os sapatos de van Gogh).
3) Derrida fala de Schapiro como um "detetive" - Marshall Berman, que talvez tenha visto Derrida em 1977, em seu ensaio de 1994 sobre Schapiro (incluído em Aventuras no marxismo), vai além e o chama de "detetive ontológico" -, um detetive que procura nos rastros dos quadros de van Gogh as provas que atestam o crime de Heidegger, o crime de tomar o "célebre quadro" como um exemplo solto, alheio ao contexto do artista. Em Walser, por outro lado, não um crime, mas uma cena de morte, de abandono - e os rastros presentes na cena de Walser não levam ao futuro (à interpretação de Heidegger, no caso da "investigação" de Schapiro), mas em direção ao passado, a uma leitura retrospectiva da vida e da obra de Walser a partir dessa cena tão ambivalente e desconfortável, ao mesmo tempo que tão emblemática e poética.
 

terça-feira, 9 de abril de 2013

Outubro de 1977, 2

Kurt Goldstein, 1878-1965
1) Derrida, já no início do texto sobre van Gogh, fala "que se trata efetivamente de uma história de fantasmas", que envolve "uma dívida mais ou menos fantasmática, restituir os sapatos a quem tem direito sobre eles". Além disso, se trata de saber "que tipo de espectro vive ainda nos sapatos", se aqueles da cidade, como quer Schapiro, ou do campo, como quer Heidegger, e finalmente: os sapatos são habitados por fantasmas ou são eles mesmos "a espectralidade que retorna, que volta, que corresponde"? O fantasmático na imagem de van Gogh é aquilo que aparece (os sapatos) ou aquilo que se supõe estar por trás do que aparece (um corpo, um caminhante)?
2) Aby Warburg, nos escritos de apresentação do Atlas Mnemosyne, produzidos em fins da década de 1920, define a história das imagens como "uma história de fantasmas para adultos" - e Georges Didi-Huberman, em seu comentário sobre o atlas de Warburg, fala que a "ótica warburgiana" trata de situar os fenômenos da arte em uma "antropologia ou uma psico-história capazes de verificar a política das sobrevivências ativas em cada sintoma cultural" (Atlas ¿Cómo llevar el mundo a cuestas?, p. 149). No contexto dos sapatos de van Gogh, portanto, são requisitados dois momentos heterogêneos de sobrevivência: para um sintoma cultural (os sapatos), duas políticas, duas lógicas, a de Heidegger e a de Schapiro, cada uma delas com sua respectiva espectografia (fantasmas da cidade e do artista, para Schapiro; fantasmas da técnica e da terra, para Heidegger).
3) Política das sobrevivências e política dos deslocamentos: Derrida aponta que a interpretação de Heidegger era típica daquele "que podia permanecer", que "queria calçar os sapatos em seus pés de homem do campo", no "pathos do chamado da terra", tão carregado de sentidos na Alemanha da década de 1930; a interpretação de Schapiro, por outro lado, é típica daquele que deve forçosamente colocar-se em movimento, em fuga. Esse segundo caminho ganha densidade porque Schapiro dedica seu ensaio de 1968 a Kurt Goldstein, que, depois de ser preso pelos nazistas, foge da Alemanha em 1933 e passa a ensinar em Columbia em 1936. "Foi Kurt Goldstein quem primeiro me alertou para o ensaio de Heidegger", escreve Schapiro, e assim por diante.      

domingo, 7 de abril de 2013

Outubro de 1977, 1

Natureza-morta com cerâmica e tamancos, 1884
1) São oito os quadros pintados por van Gogh ao longo da década de 1880, informa Meyer Schapiro. Os tamancos pertenem ao trabalhador do campo, sua utilidade está dada, são observados à distância - mas as botas e os sapatos, continua Schapiro, com a perspectiva enviesada, com a composição desarticulada, com as pinceladas densas, esses são de van Gogh. Schapiro rastreia cartas e testemunhos que indicam que van Gogh comprou as botas num mercado de pulgas, que usou as botas, que se identificou com elas e que, em momento de extrema privação, as tomou como modelo.
2) Além disso, os sapatos surrados são a imagem do artista como caminhante, como errante e como peregrino (Francis Bacon também já pensou van Gogh como andarilho), como alguém em busca, como alguém que lida com algo que gira em torno a um vazio (o vazio do quem sou/fui/serei? - que Cortázar, por exemplo, traduz no toquei isso amanhã de O perseguidor).
3) Em Heidegger, os sapatos não levam a lugar nenhum - eles representam a fixidez dos pés na terra, a ligação do ser à técnica. Derrida escreve (La vérité en peinture): ainda que antagônicas, são duas projeções análogas, que levam os sapatos para além daquilo que eles fazem ver. Eis o cerne da desconstrução: desmontagem e dissecação das simetrias recalcadas entre contrários. Derrida argumenta que Schapiro e Heidegger compartilham um mesmo pressuposto arbitrário: aquele que determina que os sapatos de van Gogh são sempre pares. Quem pode garantir? Suplemento ao cerne da desconstrução: recuar à certeza mais evidente, mais banal (à moeda mais corrente), pois é ela que frequentemente sustenta as declarações mais duvidosas (cegueira e insight).

sábado, 6 de abril de 2013

Outubro de 1977

Tamancos, 1888
1) Em outubro de 1977, na Universidade Columbia, em Nova York, convidado por Edward Said, Jacques Derrida oferece um seminário sobre Heidegger, sobre a origem da obra de arte, sobre van Gogh e suas imagens dos sapatos. A versão final, a versão escrita, mostra uma estrutura de diálogo - marca com travessões as interferências de uma voz externa, uma voz alheia emulada por Derrida e sobreposta ao seu próprio discurso. Derrida, muito teatralmente, divide a si diante dos outros e enuncia essa divisão na cadência da voz, no ritmo que utiliza para interpelar a si próprio. Meyer Schapiro está na plateia - van Gogh lhe diz respeito muito diretamente.
2) Em 1968, Schapiro publica uma "Nota sobre Heidegger e van Gogh", ou ainda, a natureza morta como objeto pessoal. Argumenta que Heidegger estava errado, em 1935, ao afirmar que os sapatos pintados por van Gogh pertenciam (ou representavam, ou exemplificavam) a um camponês - Schapiro diz que não, os sapatos eram de van Gogh, os sapatos eram van Gogh. E diante de Schapiro é justamente esse texto que Derrida disseca. "Dois impulsos complementares de restituir a pintura de van Gogh à verdade", escreve Derrida sobre Heidegger e Schapiro. O primeiro é vago, o segundo é específico; para Heidegger, a imagem é um exemplo, para Schapiro, cada quadro deve ser considerado em seu contexto; sapatos são sapatos, botas são botas e tamancos são tamancos.
3) Noventa anos antes da conferência de Derrida, em Arles, van Gogh dava sua única contribuição, a única pista: escreve no verso da tela: Vincent, 87. Para Schapiro, os sapatos eram de van Gogh, mostravam sua inquietude, seu desconforto. Para Heidegger, os sapatos diziam respeito ao camponês, à terra, ao trabalho e à técnica. Para Derrida, nem um nem outro, ou ainda, ambos simultaneamente. Como em César Aira, que se faz monja e menina, o van Gogh de Derrida se faz camponês, se faz girassol, se faz corvo e se faz homem e mulher. Van Gogh, argumenta Derrida, se faz e se mostra pelo avesso, pela sola, pelo externo que se dobra no interno, pelo cordão que faz o percurso e sobrepõe as zonas de contato. Se Schapiro dizia que Heidegger não via o quadro de van Gogh (sua especificidade, seus detalhes), Derrida faz ver a Schapiro (diante dele) os elementos que ainda assim, mesmo depois de sua intervenção, permaneceram invisíveis.
Sapatos, 1888
 

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Echenoz e Flaubert

Albert Thibaudet
1) Em setembro de 2001, Jean Echenoz dá uma entrevista sobre Flaubert para a Magazine Littérarie. Echenoz afirma que começou a ler Flaubert tarde, com vinte e oito anos - na época em que começava a escrever seu primeiro livro. "O que me impacta é a natureza quase 'fractal' da sua escritura", fala Echenoz sobre Flaubert. O estilo de Flaubert está em tudo, desde a mais curta das frases até a consideração mais ampla dos romances tomados em conjunto. 
2) Echenoz dá o exemplo da última frase do conto "Herodíade", que fecha o livro Três contos. Os discípulos de São João Batista levam sua cabeça cortada: Comme elle était très lourde, ils la portaient alternativement ("Como era muito pesada, carregavam-na alternadamente" - tradução de Milton Hatoum e Samuel Titan Jr. Cosac, 2004, p. 126). Uma frase breve, prosaica, afirma Echenoz, mas que reúne todas as qualidades da escrita de Flaubert - visualidade, concisão, tragicidade e ironia, provocativa em seu caráter aparentemente inacabado. Echenoz fala também da "audácia de terminar com um advérbio", "um advérbio literalmente interminável", e essa audácia é "uma pequena mostra de tudo que se encontra em qualquer um de seus romances". 
3) Em janeiro de 1920, na Nouvelle Revue Francaise, Marcel Proust publica um ensaio: "À propos du 'Style' de Flaubert", uma resposta a um ensaio anterior de Albert Thibaudet. "Fiquei estupefato", afirma Proust, com o fato de Thibaudet "considerar sem muito talento para a escrita um homem que, pelo uso inteiramente novo e pessoal que fez do passado definido, do passado indefinido, do particípio presente, de certos pronomes e certas preposições, renovou a visão que temos das coisas quase tanto quanto Kant". Ao longo de todo o ensaio Proust é preciso em delinear os elementos que constroem a excelência do estilo de Flaubert. Um exemplo: "estamos enfim cientes do gênio de Flaubert somente pela beleza de seu estilo e pelas singularidades imutáveis de uma sintaxe deformadora", "observemos ainda uma dessas singularidades: por exemplo, um advérbio terminando não apenas uma frase, um período, mas um livro (Última frase de Herodíade: 'Como fosse muito pesada (a cabeça de São João), eles a carregavam alternadamente')" (Marcel Proust, Nas trilhas da crítica. Tradução de Plínio Augusto Coelho. Edusp, 1994, p. 75).

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Leitores de Faulkner, 2

Joseph-Maurice Ravel em 1927
1) Jean Echenoz também é leitor de Faulkner, e mostrou isso numa curiosa descrição de Maurice Ravel, o compositor francês. É de 2006 o livro de Echenoz, Ravel, uma ficção que acompanha a primeira e única viagem de Ravel aos Estados Unidos. Logo no início, quando está embarcando no navio, Ravel é definido por Echenoz como tendo "um físico de jóquei de William Faulkner que, ao mesmo tempo, divide sua vida entre duas cidades - Oxford, Mississippi e Nova Orleans -, dois livros - Mosquitoes e Sartoris - e dois uísques - Jack Daniel's e Jack Daniel's" (Jean Echenoz, Ravel, Minuit, 2006, p. 22).
2) O curioso é que Mosquitoes foi publicado por Faulkner no mesmo ano em que se passa a história de Echenoz - 1927 (que é também o ano de dissolução da conjura portátil da História abreviada de Vila-Matas). Sartoris, por outro lado, pertence ao futuro - a primeira edição é de 1929. Como acontece com Coetzee na passagem de Elizabeth Costello, Faulkner também serve a Echenoz como uma espécie de ponte temporal, como um espécie de suspensão da narração restrita, ou ainda, como uma espécie de intervenção externa operada pelo autor em seu próprio texto (uma glosa que se dá enquanto a ficção está se fazendo e que se mistura a ela). 
3) O Ravel de Echenoz é curioso - seu físico diminuto, seu gosto requintado para roupas ("o primeiro a se vestir inteiramente de branco na França"), seus problemas de sono. Echenoz dá ênfase também a uma espécie de sub-gênero literário - a literatura de leitura de viagem. Assim como Thomas Mann fez em 1934 com o Dom Quixote (no mesmo trajeto de Ravel, ou seja, da Europa aos Estados Unidos), Ravel fez nos últimos dias de 1927 e nos primeiros dias de 1928, a bordo do navio France - escolheu uma leitura, no seu caso Joseph Conrad, A flecha de ouro. O mais interessante é que Echenoz recria em seu romance o encontro de Ravel e Conrad, ocorrido em 1922 (o mesmo ano do encontro de Proust e Joyce em um hotel de Paris). Em dezembro desse ano, Conrad escreve uma carta a André Gide (isso não está no romance de Echenoz), comentando o "grande prazer" de conhecer Ravel e também Paul Valéry - J'ai eu dernièrement le très grand plaisir de faire la connaissance de Ravel et de Paul Valéry. Ils ont été charmants tous les deux pour moi (Martin Ray, Joseph Conrad: Memories and Impressions. An Annotated Bibliography, 2007, p. 80).