sexta-feira, 29 de março de 2013

Leitores de Faulkner, 1

1) Coetzee se reafirma como leitor de Faulkner em Diário de um ano ruim, lançado quatro anos depois de Elizabeth Costello. Está no capítulo 11 da primeira parte, "Da maldição", quando Coetzee vai dos egípcios a Bush para estabelecer uma espécie de teoria do castigo arcaico, um castigo que persegue as gerações posteriores de um povo que tenha cometido atos de violência: "deve haver gente em todo mundo hoje que, recusando-se a aceitar que não existe justiça no universo, invoca a ajuda de seus deuses contra a América, uma América que se proclamou acima do alcance das leis das nações. Mesmo que os deuses não atendam hoje ou amanhã, dizem a si mesmos os solicitantes, eles ainda podem entrar em ação dentro de uma ou duas gerações". (Diário de um ano ruim. Trad. José Rubens Siqueira. Companhia das Letras, 2008, p. 56-58).
2) "Esse é precisamente o tema profundo de William Faulkner", escreve Coetzee no parágrafo seguinte, completando: "o roubo da terra dos índios ou o estupro de mulheres escravas voltam de forma imprevisível gerações depois, para assombrar o opressor. Olhando para trás, o herdeiro da maldição sacode a cabeça, pesaroso. Achamos que eles eram impotentes, diz, por isso fizemos o que fizemos; agora vemos que eles não eram impotentes coisa nenhuma". Dentro de um livro estupendo por sua montagem, Coetzee posiciona em poucas páginas um movimento que condensa e potencializa o todo. Cada parágrafo diz respeito a uma temporalidade distinta - primeiro os egípcios, depois a América do presente e em seguida Faulkner e seu tema profundo, que é, por si só, um problema de temporalidade, de lidar com o recalcado que emerge, lidar com a violência que se perpetua (e a intuição pode ser ampliada em direção à história literária: Cormac McCarthy como um escritor que lida com uma segunda camada ou uma segunda onda desse recalcado, com aquilo que ainda permanece ecoando mesmo depois da intervenção de Faulkner).    
3) Fredric Jameson também é leitor de Faulkner e diagnosticou o mesmo "tema profundo", nos seguintes termos: o estilo de Faulkner tem como precondição formal, escreve Jameson, "a situação da memória". Uma ação violenta ou um gesto no passado, "uma visão que fascina e obceca os contadores de histórias que apenas podem comemorá-la no presente e, ainda assim, têm de projetá-la como uma imagem completa". A linguagem, em Faulkner, retorna incessantemente para esse "gesto fora do tempo", "acumulando desesperadamente adjetivos e qualificativos", em uma tentativa de fazer ressurgir, de fora, o que é "virtualmente uma forma fechada, que não pode mais ser reconstruída pelo movimento das sentenças". Jameson comenta também "a extraordinária função do agora em Faulkner: geralmente acompanhado de um verbo no passado, este agora muda, através da situação do ouvinte, o espaço do presente traumático da memória obsessiva do passado para o presente do nosso tempo de leitura das sentenças de Faulkner". (Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. Ática, 1997, p. 151-152).

quinta-feira, 28 de março de 2013

Leitores de Faulkner

1) Quem lê Faulkner em Elizabeth Costello
Qual John lê Faulkner em Elizabeth Costello
São duas vozes que compartilham o mesmo nome, John, um movimento certamente deliberado. John Coetzee ou John Costello, qual deles é o leitor de Faulkner? ("John Costello" é uma forma-didática, porque Costello é o nome de solteira de Elizabeth e seu filho provavelmente não o utiliza).  
2) "Ele não odeia a mãe", alguém pensa, diz ou escreve em Elizabeth Costello. "Ao pensar nessas palavras", esse alguém continua entre parênteses, "outras palavras ressoam em sua cabeça: as palavras de um dos personagens de William Faulkner insistindo de maneira loucamente repetitiva que não odeia o Sul. Quem é esse personagem?", fim da digressão. Quem tem esse acesso direto à mente do filho de Elizabeth Costello? Será o próprio filho ou essa voz externa que sempre diz coisas como "Vamos pular para frente" ou "Pulamos para a frente de novo, desta vez no texto, não na performance"?.   
3) Impossível dizer, e aí está a arte de Coetzee. Porque os parênteses reforçam a ideia da externalidade da voz e do comentário, embora os sentimentos estejam ligados ao filho (o ódio, o amor). Mas o narrador já disse que John Costello é professor de física e que só depois dos trinta anos de idade decidiu ler os romances escritos pela mãe. Não parece exato ligar a esse personagem (a essa consciência, a essa entidade delimitada pelo percurso do primeiro capítulo de Elizabeth Costello) uma leitura tão insistente de Faulkner - e mais ainda: ter o distanciamento necessário para ligar essa minúcia de Faulkner a uma iluminação tão importante para sua vida (odiar ou não odiar a mãe?). "Quem é esse personagem?": quem se preocuparia com isso em um momento desses (somente um doente de literatura, como Montano, como John Coetzee).

terça-feira, 26 de março de 2013

Jameson, Houellebecq

1) Fredric Jameson, em Modernidade singular, não apresenta uma teoria do moderno, mas uma perspectiva do moderno e em direção ao moderno. O campo de forças triangulado lhe serve como um jogo de armar, que é simultaneamente um método e uma imagem do que é possível dentro da leitura do moderno. Não se trata de estabelecer campos e pertencimentos, mas de traçar rotas e áreas de sobreposição intermitentes. Jameson desloca a triangulação (regras, tecnologia, revolução) no tempo e esse movimento é boa parte da lição:
2) Se a ruptura de linguagem, costumes e posturas serve para Flaubert (Madame Bovary, 1856), por exemplo, servirá também para Sade (Os 120 dias de Sodoma, 1785) e para Céline (De castelo em castelo, 1957) - cenário que pode ser complementado, como quer Jameson, pelos traços "revolucionários" de cada época (o Grande Terror para Sade e o nazismo para Céline, por exemplo). Jameson escreve que sua ideia não é de que os artistas modernos ocupam o mesmo espaço das novas forças sociais, ou que manifestam uma "simpatia ideológica" ou "um conhecimento existencial" delas, mas sentem essa força gravitacional a distância, e suas próprias vocações de deslocamento estético se encontram reforçadas e intensificadas pela mudança radical que se pressente possível no "mundo social exterior". 
3) Talvez a atualização dessa triangulação seja produtiva para pensar certos autores que parecem, a cada livro que lançam, tão representativos do tempo presente - e penso especialmente em Aira ou Bellatin, mas sobretudo em Michel Houellebecq. O sexo, abrigo da subjetividade e da intimidade, se transforma em sistema de hierarquia social. O "escrever bem" é demolido pela técnica, pela linguagem de brochuras de propaganda, manuais de dispositivos, pelas conversas do setor de informática e de marketing. Em seus livros, há sempre alguém observando, inerte e alheio, aquilo que acontece ao redor - a vizinhança ameaçadora em Extensão do domínio da luta, os atentados terroristas em Plataforma ou a desolação apocalíptica em A possibilidade de uma ilha. Para a humanidade de Houellebecq, tudo que há de revolucionário será sempre estranho, desconfortável, ilegível.     

sábado, 23 de março de 2013

A triangulação da modernidade

1) Em 2002, Fredric Jameson publica um livro (Modernidade singular) no qual discute a modernidade a partir de alguns pontos levantados por Perry Anderson dez anos antes, em 1992, em seu livro A Zone of Engagement (que saiu no Brasil com apenas um terço do conteúdo original - Zona de compromisso, Unesp, 1996 -, ao contrário da edição em espanhol, Campos de batalla, Anagrama, 1998, completa). Anderson, comenta Jameson, propõe a modernidade como "um campo de forças triangulado por três coordenadas principais": a) convencionalismo e academicismo nas artes (regras de produção e conduta); b) inovações tecnológicas e c) a proximidade imaginada de uma revolução social.
2) Como faz com bastante frequência, Jameson resgata Balzac para dar conta da imagem desse campo de forças da modernidade no século XIX - embora Anderson cite especialmente Manet, Baudelaire e Flaubert. Jameson ressalta a capacidade de certos autores/obras (Balzac, Flaubert, Stendhal) de captar uma nova dinâmica que ainda não era visível (ou geograficamente representativa), mas que incidia diretamente sobre as formas de vida então nascentes. É em parte essa inquietude da ruptura iminente que faz a ênfase de certos romances desses autores recair sobre: as contradições nas cidades, o descompasso entre o desejo dos personagens e aquilo que lhes cabe ver e viver, a estupidez flagrante dos modos tradicionais de conceber o mundo, a literatura, as artes, o sexo, os corpos, etc.    
3) A modernidade não se resolve com dicotomias, mas na fluidez das contradições dos casos específicos. A cidade é a libertação da mente provinciana, mas é também o campo das ilusões, do logro e do desamparo - assim como o sexo, que é tanto libertação e conhecimento como jogo de poder e sujeição. O final de A educação sentimental de Flaubert é, nesse sentido específico da mescla e da indecidibilidade, paradigmático: a ida dos dois amigos ao prostíbulo condensa o sexo, a política, a revolução, o mapa da cidade e a temporalidade das expectativas e dos desejos - eles estão, afinal de contas, repetindo uma cena anterior, mas a repetição da cena também anuncia a repetição da história (ou sua irreversibilidade, ou a matriz autofágica de nossa concepção do tempo). 

quarta-feira, 20 de março de 2013

Byron na Itália

1) David Lurie, o protagonista do Disgrace de Coetzee, alimenta há anos esperanças de finalizar sua ópera, Byron na Itália. Ele continua pensando, escrevendo, esboçando, mesmo depois da demissão, do exílio, de sua desfiguração e da violação de sua filha. Perdido no deserto africano, ele persiste em seu desejo de alcançar Byron, sua amante Teresa, e a Itália. Ele sabe que jamais verá seu projeto pronto, que jamais verá sua ópera encenada, e mesmo assim ele continua. De onde vem esse desejo alheio a toda finalidade, produtividade ou utilidade? Esse gasto inoperante de Lurie, que faz pensar em Georges Bataille (La notion de dépense, 1933), é a última resistência do pensamento em um cenário brutalizado que o ignora.  
2) No começo do projeto de Lurie, Byron ainda está vivo - a ópera gira em torno das súplicas que lhe faz sua amante, a italiana Teresa. Trabalhando no exílio, Lurie faz de Byron um fantasma e de Teresa uma viúva nostálgica, que se lamenta enquanto lê as cartas antigas de seu ex-amante. Como em Foe, Coetzee desloca a origem da voz narrativa em direção ao feminino, transformando o masculino em eco fantasmático. Para Lurie, esse lamento nostálgico não combina com a plenitude do som do piano: ele encontra um pequeno banjo em sua casa destruída, e é dele que retira as notas do canto de Teresa.  
3) Com piano ou banjo, não há sequer uma mínima fagulha de interesse por Lurie e seu projeto no ambiente em que vive. Lurie prega para as pedras. Ele trabalha, como sabemos, em uma clínica veterinária - se ocupa no manejo dos animais mortos, na administração dos dejetos. É na clínica que encontra sua audiência: um cão sem uma perna, ridículo e enternecedor em sua movimentação errática, que pára, espicha o pescoço, põe a cabeça de lado e estica as orelhas sempre que Lurie começa a tocar o banjo. Lurie é absorvido por esse contato, por esse sinal de reconhecimento, por esse espaço de troca que é inaugurado a partir do olhar do cão. Por que não incluir na ópera seu corpo, seu olhar, seu uivo?, pergunta-se Lurie. Talvez seja possível salvar o cão do mundo da técnica e da utilidade, salvá-lo da morte, através do movimento de incorporá-lo, o cão, seu corpo e sua linguagem, ao mundo da arte.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Avenida Niévski, 3

1) Os corpos na avenida Niévski, indo e vindo. O corpo da linda moça que o pintor Piscariov deseja e que persegue. Os corpos no prostíbulo, "repugnante antro" de "depravação deplorável", demais para a sensibilidade do jovem Piscariov. Os corpos no sonho, dançando com cortesia e decoro: "ombros reluzentes das damas e os fraques pretos, os lustres, as lâmpadas, as gazes vaporosas que esvoaçavam, as fitas etéreas e o gordo contrabaixo que assomava por trás do parapeito do magnífico balcão, tudo era esplêndido para ele". Mas é o corpo de Piscariov que acorda, de repente, descobrindo a farsa - "pareceu-lhe que algum demônio esmigalhara o mundo inteiro em muitos pedaços diferentes e juntara todos esses pedaços sem nenhum sentido, sem nenhum tino".
2) No fim, o corpo morto de Piscariov no chão, a garganta aberta por sua própria navalha. "Ninguém chorou por ele", escreve Gógol, "ao lado do corpo sem vida, não se via nenhuma pessoa além da habitual figura do inspetor de polícia do quarteirão e da carranca indiferente do médico legista". A modernidade como cena do crime (que é o tema central de Kusniewicz, como visto aqui). Não é por acaso que os únicos que acompanham o cadáver sejam os representantes da medicina e da polícia - os responsáveis pelo manejo dos dispositivos de medição, análise e contenção dos corpos. 
3) Esse controle, que Gógol condensou na breve cena de um corpo morto na avenida Niévski, ganharia proporções imensas com o passar do tempo. Pouco mais de cem anos depois, em 1940, o assassinato de Issac Bábel coroaria essa progressão. Bábel, assim como Gógol, era um artista aberto ao mundo e aos fluxos heterogêneos de outras geografias. Aquilo que a Itália foi para Gógol, a França foi para Bábel - seus primeiros contos foram escritos em francês, língua que Bábel traduzia ao russo. Um de seus melhores contos é justamente sobre uma tradução de Guy de Maupassant (e o conto leva como título o nome do escritor francês). Do cadáver de Piscariov ao corpo fuzilado de Bábel, uma linha tortuosa que mostra o absurdo crescimento do controle e de seus procedimentos de nacionalização e purificação das artes.         

segunda-feira, 11 de março de 2013

Avenida Niévski, 2

1) Como tudo que escreveu Gógol, Avenida Niévski também tem seu lado sombrio. O pequeno ucraniano atormentado gostava de costurar suas frases com ironia e imagens hilariantes - até o momento em que irrompe o horror e a sordidez (Dostoiévski, por exemplo, absorveu intensamente esse segundo movimento abrupto de Gógol). O sensível artista Piscariov vê uma linda moça na avenida Niévski e segue seu cheiro, seus cachos e seus olhares até uma ruela afastada. Ela sobe as escadas de um sobrado estranho e parece incitar Piscariov à perseguição. Uma vez no alto, a armadilha se fecha: "repugnante antro onde a depravação deplorável estabeleceu sua morada, engendrada pela pseudo-erudição e pelo terrível excesso populacional da capital. Aquele antro onde o homem, de maneira profana, reprimiu e riu-se de tudo o que é puro e sagrado e que embeleza a vida, onde a mulher, o encanto do mundo, obra-prima da criação, converteu-se numa estranha e ambígua criatura, onde, juntamente com a pureza da alma, ela se despojou de tudo o que é feminino e apropriou-se, repulsivamente, das maneiras e do descaramento masculino" (Avenida Niévski, trad. Svetlana Kardash, Ars Poetica, p. 35). 
2) Diante desse cenário, Piscariov, "como uma cabra selvagem", "desembestou para a rua". Ele não aceita o choque da realidade diretamente em sua visão romântica. O que é mais interessante é que só a partir do sonho que Piscariov consegue moldar esse choque e absorver esse trauma: ele sonha que a moça lhe manda um carro para buscá-lo para um baile. O tecido duro da cidade invadindo o tecido suave do sonho; o espaço da prostituição e da mercantilização dos corpos como o trauma moderno de Piscariov - são dois temas imensos em Baudelaire e Benjamin ("O espaço de tempo entre o sono e o completo despertar inaugura um intervalo, um entre-lugar, que, para Benjamin, era simultaneamente fenomenológico e alegórico").
3) Gógol não só antecipa a confluência de prostituição, modernidade e sonho, mas antecipa também a potencialização que as drogas oferecem dessa triangulação (os "paraísos artificiais" de Benjamin, De Quincey e Baudelaire), já que Piscariov, não conseguindo mais sonhar com a moça, recorre ao ópio. Mas Gógol também acompanha seu contemporâneo Balzac - a jornada de Piscariov é a jornada de suas "ilusões perdidas", a jornada de sua controlada visão do mundo e da arte que não resiste a tudo de "úmido, plano, reto, pálido, cinzento, nebuloso" que a avenida Niévski representa.  

sábado, 9 de março de 2013

Avenida Niévski, 1

1) Tanto já se escreveu sobre a influência do meio sobre o humor, a produtividade, a criatividade, a arte - o sangue, os fluidos, as cores, a luz, a água, o ar, tudo em direção à plenitude ou ao esvaziamento, com todas as posições entre uma coisa e outra. Na Avenida Niévski de Gógol tudo é "úmido, plano, reto, pálido, cinzento, nebuloso", e Piscariov, o pintor, só pode contar com seus sonhos para transcender esse cenário. As ideias de Gógol ecoam naquelas que André Gide, noventa anos depois, colocará na boca da inesquecível Lady Griffith de Os moedeiros falsos:
2) "Meus pensamentos são sempre da cor de minhas roupas (ela tinha vestido um pijama púrpura laminado de prata). Lembro-me de um dia, quando era bem pequena, em São Francisco; quiseram vestir-me de preto, sob pretexto de que uma irmã de minha mãe tinha acabado de morrer; uma velha tia que eu nunca vira. Chorei o dia inteiro; estava triste, triste; imaginei que eu tinha muita mágoa, que sentia imensa falta de minha tia... só por causa do preto. Se os homens hoje são mais sérios do que as mulheres, é porque usam roupas mais escuras. Aposto que você já não tem mais as mesmas ideias de agora há pouco [ela acabou de vestir Vincent com "uma djelaba de seda verde pistache" e "duas largas echarpes cor de berinjela", uma na cintura, outra como turbante]" (André Gide. Os moedeiros falsos. Tradução de Mário Laranjeira. Estação Liberdade, 2009, p. 71). 
3) O contraponto mais extremo que Gógol pôde pensar para a umidade da Avenida Niévski foi a Itália - "os pintores italianos, orgulhosos, ardentes como a Itália e o seu céu". Quem poderia reprovar sua escolha? Certamente não Goethe (a doutrina das cores, os esboços ao longo da viagem), Sterne (os relatos sentimentais) ou Warburg (os deuses, as tumbas, os espelhos); nem Napoleão (o dialeto da infância), Chatwin (sua torre na Toscana) ou Borges (lendo Dante no trem); Wilcock (a nova língua materna), Freud (as ruínas de Roma), Balzac (Tiziano, Raffaello Sanzio e Giorgione) ou Malamud (os retratos de Fidelman).     

sexta-feira, 8 de março de 2013

Avenida Niévski

1) Italo Calvino falou da Paris de Balzac como uma "cidade-selva", ressaltando que os elementos "terrestres" da cidade não interessavam a Flaubert e que já não eram mais perceptíveis em Baudelaire, por exemplo. Mas não é preciso ir até Joyce (Dublin), Döblin (Berlim) ou Joseph Cornell (Nova York) para observar a ruptura - ela já está dada em um contemporâneo de Balzac: Nicolai Gógol (1809-1852; Balzac: 1799-1850). A novela Avenida Niévski foi publicada em 1835, mesmo ano em que saiu O pai Goriot, de Balzac. O "genuíno mistério" de São Petersburgo, escreve Nabokov, "foi experimentado e exibido quando Gógol desceu passeando pela Avenida Niévski".
2) As primeiras páginas oferecem um panorama da avenida - que tipos a frequentam e em qual horário, o que dizem, o que vestem, como usam os bigodes ou os cabelos. "E que mangas femininas você encontrará na Avenida Niévski!", escreve Gógol, "Ah, que encanto! Elas parecem um pouco com dois balões, de maneira que a dama poderia, de repente, elevar-se no ar, se um homem não a estivesse amparando; porque erguer uma dama no ar é tão fácil quanto um cálice cheio de champanhe que se leva à boca". A avenida é o universo em miniatura, e o ritmo da natureza se adapta à experiência da cidade: "soam as três horas e termina a exposição, a multidão se esvai... Às três horas - nova mudança. Na Avenida Niévski, de repente, inicia-se a primavera: toda ela se cobre de funcionários em uniformes verdes" (Gógol, Avenida Niévski, tradução Svetlana Kardash. Ars Poetica, 1992, p. 19).    
3) O olhar do narrador logo ganha foco e passa a acompanhar um pintor tímido, desajeitado e miserável, Piscariov. "Um pintor de Petersburgo! Um pintor na terra da neve, um pintor no país dos finlandeses, onde tudo é úmido, plano, reto, pálido, cinzento, nebuloso", lamenta Gógol, e continua: "pintores desse tipo não são nada parecidos com os pintores italianos, orgulhosos, ardentes como a Itália e o seu céu" - "se o ar fresco da Itália desse uma sopradinha sobre eles", ou seja, os pintores de Petersburgo, "certamente se desenvolveriam de uma maneira tão livre, ampla e brilhante como uma planta que finalmente foi tirada do quarto e levada para o ar livre". Que arte pode nascer do plano, do reto, do cinzento e do nebuloso? Que cidade é essa que só dá à luz funcionários, burocratas e escriturários? (Gógol não só morou em Roma como era leitor incansável de Dante: o projeto inicial de Almas mortas era uma trilogia nomeada "Paraíso", "Purgatório" e "Inferno").

quinta-feira, 7 de março de 2013

A cidade-selva de Balzac

Um dos mapas parisienses do Atlas de Franco Moretti
1) Ainda em seu ensaio sobre o romance, Italo Calvino escreve sobre Balzac: "é aquele que descobre a vitalidade natural, quase biológica, da grande cidade". "A Paris de Balzac", continua Calvino, "é a verdadeira cidade-selva; em nenhum de seus epígonos tardios que abusaram dessa ordem de similitudes há aquele sentido de sumos terrestres, de linfa vegetal, de cavernas ou profundidades submarinas que emana dos itinerários de Vautrin ou de Rubempré: verdadeiros homens da natureza entre seus personagens, homens e mulheres dotados de um vigor atlético nas virtudes e nos vícios, para quem toda ação e toda explosão de sentimentos parece resolver-se numa prova de saúde ou de robustez" (Assunto encerrado, p. 34).
2) O espaço em Balzac é completamente diverso daquele de Flaubert, argumenta Calvino. Para Flaubert, o espaço serve de laboratório para o artifício - por isso a oscilação de cenários: Cartago, Paris ou Caen. Balzac, por outro lado, é obcecado por Paris, sua "cidade-selva" feita de labirintos, de armadilhas e de riquezas partilhadas pelo acaso. Em seu Atlas do romance europeu, Franco Moretti mostra as deambulações dos personagens de Balzac no mapa da cidade, apontando as margens e os centros que organizam as tensões e as vivências entre os indivíduos (em Balzac, o desejo é materializado em um bairro, uma rua, uma casa - e frequentemente as trajetórias terminam no cemitério Père-Lachaise; como escreveu Bakhtin, "a capacidade de Balzac de ver o tempo no espaço era excepcional").
3) Mas a Paris de Balzac guarda ainda um pouco de sua "linfa vegetal", de seus "sumos terrestres": aquelas vielas que levam a um descampado, a uma horta ou a um bosque; vilas de camponeses maltrapilhos, bolsões de isolada quietude. Balzac ainda reserva o olhar para essas descontinuidades. Já não é assim com Baudelaire (que nasceu no mesmo ano de Flaubert, 1821), e também não será a mesma Paris que Walter Benjamin encontra em Eugène Atget. Não há "cidade-selva" em Berlin Alexanderplatz, de Döblin, por exemplo, nem na Nova York de Joseph Cornell (ficções que não aceitam nem a "linfa vegetal" nem os "sumos terrestres").            

terça-feira, 5 de março de 2013

Um quadro de perfeita verdade

1) Em um ensaio de 1958 ("Natureza e história do romance"), Italo Calvino usa um método de escrita que muitos anos depois vai atingir seu ápice em Seis propostas para o próximo milênio. Consiste simplesmente em apresentar longas citações de romances canônicos e, no confronto dos estilos, articular um comentário. Para Calvino, o romance chega a um impasse com Flaubert: "depois de ter acumulado pormenores minuciosos e construído um quadro de perfeita verdade, Flaubert bate os nós dos dedos sobre esse quadro, mostrando que por baixo há o vazio, que tudo o que acontece não significa nada" (Assunto encerrado, discursos sobre literatura e sociedade. Tradução de Roberta Barni, Cia das Letras, 2009, p. 35).
2) Um desvio de sentido separa o que se podia entender em 1958 das palavras de Calvino daquilo que se pode inferir hoje. Para o Calvino de 1958, o trecho acima leva a uma concepção do realismo como falta - por trás da ficção está o "fluir impalpável da vida", argumenta Calvino em seguida, um fluir "que é a um só tempo natureza e história". Mas a imagem do fundo falso do quadro de Flaubert pode ir além, tornando-se uma espécie de elo suplementar da vasta discussão sobre a linguagem ficcional e a circulação da moeda falsa - que poderia começar com Baudelaire, continuar por André Gide, Marcel Duchamp, César Aira e Jacques Derrida. Ou ainda: desnaturalizar a recepção e a circulação da ficção, ressaltando sua artificialidade, sua porosidade e seu caráter provisório (como queria Barthes a partir do prazer do texto).
3) A própria citação de Calvino já é incorporada ao novo paradigma de circulação crítica (uma teoria da citação que ganha sua operatividade com Benjamin e sua classificação com Compagnon, como mostra Dolf Oehler no último ensaio de Terrenos vulcânicos), pois abandona a linearidade de sua exposição original e, a partir daí, passa a fazer parte de um arranjo contingente de vozes heterogêneas - um horizonte que até certo ponto estava incluído no projeto expositivo original de Calvino, com seu jogo de citações de romances e breves comentários. O desnível que em 1958 ainda operava entre citação e comentário (e entre realização estética, o quadro perfeito, e logro interpretativo, o fundo falso), no entanto, já não se sustenta mais - vale mais a dinâmica da transmissão (Baudelaire em Valéry, em Benjamin e em Derrida) do que o sistema de atribuições ("Flaubert, o enganador").       

sexta-feira, 1 de março de 2013

A ficção e o tempo no espaço

1) Corpo estranho na produção de Bolaño (já comentei algo sobre esse livro), O Terceiro Reich é bem anterior ao seu conjunto de obras-primas, 2666, Os detetives selvagens e A literatura nazi na América. Esse livro estranho é também um pouco alegórico - parece sempre querer dizer algo além daquilo que diz, parece sempre fazer referência a um tempo que não é exatamente o tempo da narrativa, o tempo artificial que serve de base para as relações entre os personagens. Isso porque O Terceiro Reich não é um livro sobre personagens, é um livro sobre a relação entre tempo e espaço - ou, levando a hipótese ao seu limite, é um livro sobre a temporalização do espaço e sobre a espacialização do tempo (o que poderia nos levar também em direção à série O Bairro, de Gonçalo Tavares, ou a passagem sobre a Rue Vaneau, em Doutor Pasavento, de Vila-Matas).
2) Sebald faz algo semelhante em Austerlitz, e não é por acaso que os títulos dos livros - tanto o de Sebald quanto o de Bolaño - sejam também referências à guerra e à ocupação de territórios. Se O Terceiro Reich é puro Hitler, Austerlitz consegue ser tanto de Hitler quanto de Napoleão. Na batalha de Austerlitz, Napoleão levou os russos em direção a uma área que conhecia muito bem (havia estudado obsessivamente os mapas da região, desde a adolescência, desde a Escola Militar), posicionando as tropas inimigas sobre lagos congelados. Depois do sucesso da armadilha, rachou o gelo a tiros de canhão.
3) Para Sebald (e para a teoria do trauma de Freud), a memória é um mapa rasgado em milhares de pedaços - alguns deles estão em nossas mãos, mas a grande maioria desses resíduos está espalhada pelo mundo. Em O Terceiro Reich, o passado traumático da Europa e da Alemanha se condensa em um jogo de tabuleiro; o jovem responsável por ele não apenas sobrepõe o tempo de seu presente ao tempo passado da guerra, mas passa a ver sua vida com olhos paranoicos, como se a instabilidade do passado que ele revive dentro de seu quarto pudesse contaminar a experiência da vida presente. Mesmo sabendo que a história já está dada - não há futuro possível para o Terceiro Reich -, ele insiste em seu desejo de transformá-la, desfigurá-la. A única coisa que consegue é arrasar tragicamente sua presença no mundo e sua percepção do tempo (que era, desde o início, o objetivo técnico e estético de Bolaño - por isso a aparente morosidade do romance).