quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A visão ingênua

Lévi-Strauss no Brasil, 1935
1) Mais para o final das Confissões de um burguês, Sándor Márai já apresenta um tom contrariado: passou por Paris, Londres, Leipzig, Budapeste e tantas outras cidades, acompanhou a dissolução do Império Austro-Húngaro, conheceu pessoas, ouviu histórias e, ainda assim, constata que falta autenticidade ao mundo - toda a trajetória de Márai pode ser resumida nesse desejo contraditório: manter vivo, dentro de si, um mundo que já não existe (e seus ritos, seus gestos, sua linguagem), circundado por um mundo real que é cada vez mais homogêneo (o inverso perfeito dessa situação está na obra de Bruce Chatwin).
2) Em 1935, ano de publicação das Confissões de Márai, Claude Lévi-Strauss está no Brasil, dando aulas na USP e percorrendo o interior do país atrás de índios. Chegando a um povoado, vê "restos da carcaça de uma máquina de costura", fósforos, armas de fogo - aquela visão surpreendente, escreve Lévi-Strauss em Tristes trópicos, "eliminou a poesia de minha visão ingênua". Mesmo do outro lado do oceano, a civilização surge como uma força inexorável de normalização (São Paulo era um pouco Paris, um pouco Chicago, um pouco a selva).
3) Não se sabe se Kien, o protagonista de Auto-de-fé (1936), de Elias Canetti, enlouquece com a estagnação da civilização ocidental e por isso busca refúgio na antiguidade oriental ou se, por outro lado, enlouquece precisamente nesse movimento de distanciamento (como se a razão se perdesse no abismo entre uma cultura e a outra). "Parece fora de dúvida que não nos sentimos bem em nossa atual civilização", escreve Freud em 1930, e mais adiante: "nos guardamos do preconceito que diz que civilização equivaleria a aperfeiçoamento, seria o caminho traçado para o homem chegar à perfeição" (O mal-estar na civilização, tradução de Paulo César de Souza. Obras completas, vol. 18, Companhia das Letras, 2010, p. 47 e 58). O projeto totalitário de Hitler: homogeneizar para vencer.

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