quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O joalheiro de Leskov, 6

Chuang-Tsê, 369-286 a.C
1) O joalheiro que Leskov encontra em Praga, o velho Wenzel, é o responsável pelo misticismo do conto - cujo título completo é precisamente "Alexandrita (Um fato natural à luz do misticismo)". Para ele, as pedras profetizam, se comunicam com os homens. Mas o que interessa especialmente é o ritual do joalheiro, seus gestos com as pedras, todo o cerimonial necessário para a manipulação das pedras. Como os sábios chineses que povoavam a mente perturbada de Kien, no Auto-de-fé de Elias Canetti, o místico Wenzel de Leskov dá suas lições com muita concisão, sem alarde, seguindo o tempo plácido da natureza.
2) "Quantas vezes não fui procurá-lo", escreve Leskov, "e o meu piropo não só não estava pronto, como Wenzel nem mesmo se ocupara dele". E mais: "o meu 'prisco príncipe' ficava jogado no prato como um 'limpa-chaminés', na companhia mais baixa e mais indigna dele". Wenzel apenas esperava, como Chuang-Tsê, o sábio chinês citado por Italo Calvino em uma de suas "propostas para o próximo milênio": para desenhar um caranguejo, Chuang-Tsê pediu ao rei cinco anos e uma casa com doze empregados. Passados cinco anos, não havia sequer começado o desenho, e pediu mais cinco anos. O rei concordou. Ao fim do décimo ano, Chuang-Tsê pegou o pincel e, num único movimento, desenhou um caranguejo, "o mais perfeito caranguejo que jamais se viu", escreve Calvino (e Chuang-Tsê é uma referência também para Roberto Calasso, como ele mesmo afirma em entrevista recente).
3) Naquele que é talvez o seu ensaio mais longo, "Nueva refutación del tiempo", Borges também menciona Chuang-Tsê: fala do famoso sonho da borboleta, no qual Chuang Tzu (essa é a grafia utilizada por Borges) "sonhou que era uma borboleta e, ao acordar, não sabia se era um homem que havia sonhado ser uma borboleta ou se era, agora, uma borboleta sonhando que era um homem". Chuang-Tsê rondava Borges há tempos - desde o início da década de 1930, quando lera o volume de Herbert Allen Giles sobre o chinês, de 1889. O sonho da borboleta já havia aparecido na antologia de literatura fantástica que Borges publicou com Bioy Casares em 1940. Retorna comentado no ensaio (publicado em duas partes, 1944 e 1946), que aparece em livro (Otras inquisiciones) em 1952. Manejando a citação como uma pedra preciosa, Borges precisou de pouco mais de dez anos para lhe uma forma final.   

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O joalheiro de Leskov, 5

1) O velho Wenzel consegue ver na pedra uma série de conexões, de dados, fatos e histórias que ninguém mais é capaz de ver. Como o gaúcho rastreador de que fala Sarmiento no Facundo, Wenzel tem uma capacidade sobrenatural de ler o mundo, ler seus signos, seus traços, suas minúcias, e a partir delas contar uma história, construir um relato. Como o rastreador de Sarmiento, também o velho Wenzel passou o ofício aos filhos - e também ele persegue as pistas que levam a um crime esquecido pela história (até chegar, finalmente, ao assassinato do imperador).
2) "Em nossa época", escreve Leskov, "Wenzel é uma ave perdida no tempo, uma carta fora do baralho". O velho Wenzel está em descompasso com o tempo que lhe coube, ele vive o tempo das pedras, o ciclo lento e arcaico das vibrações místicas das montanhas. Para ele o tempo estará sempre out of joint, como grita o Hamlet de Shakespeare. Como se o joalheiro vivesse cindido no tempo - simultaneamente na vida dos homens e na vida das pedras.     
3) O velho Wenzel, escreve Leskov, levou sua pedra para passear - a pedra preciosa que muitos dias antes Leskov lhe havia confiado para a correção da lapidação. Foram para "além da escadaria de Nusle", em Praga, "em frente da muralha de Carlos". A pedra revelou ao velho Wenzel toda sua história, desde "os priscos dias, quando não havia nascido nem Sócrates, nem Platão, nem Aristóteles, e também não tinha acontecido nem o pecado de Sodoma nem o incêndio de Sodoma". Uma característica de Leskov, notada por Benjamin em seu ensaio sobre o narrador, aqui se encontra exacerbada: a arte de narrar retira seu vigor das profundezas da natureza inanimada - que, dialeticamente, passa à vida no encontro do leitor com a escritura.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O joalheiro de Leskov, 4

1) Eis aqui, finalmente, o joalheiro de Leskov: o velho Wenzel, visionário, aquele que tem acesso à natureza através das pedras, que sente a vibração imemorial das profundezas da terra na superfície e no brilho das pedras preciosas (como Heidegger escrevendo Ser e tempo em uma cabana perdida na Floresta Negra, sentindo as mesmas reverberações arcaicas no posicionamento do ser como ser-com, na ligação com o insondável). O velho Wenzel vê na pedra a imagem portátil do "fogo denso e inextinguível da montanha tcheca"; ela está viva, escreve Leskov.
2) A pedra se escondia, "um rei tcheco que sabia como fugir de ignorantes", fala o joalheiro, "diante dos olhos deles, transvestiu-se de limpa-chaminés. Sim, sim, eu o vi; eu vi o mascate judeu levando-o no bolso, e era por ele que o mascate escolhia outras pedras". Nesse ponto, Leskov acrescenta uma nota de rodapé ao seu relato: "Quando examinamos longamente pedras de uma única cor", escreve Leskov, "o olho 'emburrece' e perde a capacidade de distinguir as melhores cores das piores. Para restabelecer essa capacidade", continua Leskov, "os compradores de pedras levam consigo um regulador, ou seja, uma pedra cuja cor já lhes é conhecida pela qualidade. Ao compará-la com outra, ele logo vê a diferença de brilho e pode avaliar com correção o seu valor".
3) Na intervenção de Leskov, a pedra aparece como instrumento crítico: é ela, com sua natureza superior, que dá a possibilidade de se estabelecer uma escala, uma perspectiva, uma linha de fuga para a avaliação. O piropo tcheco era usado pelo "mascate judeu" (que o velho Wenzel consegue enxergar não se sabe onde, não se sabe como) como um modelo, um gabarito, uma matriz - a obra-prima que lhe permitia colocar todo o resto, tudo o que encontrava pelo caminho, em perspectiva (como Jesus Cristo na cruz). 

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O joalheiro de Leskov, 3

1) "No verão de 1884", escreve Leskov no início da quarta seção do conto "Alexandrita", "tive ocasião de visitar as terras tchecas". As linhas restantes são ocupadas na exaltação das pedras preciosas da região. Antes da viagem, continua Leskov na seção seguinte, "recebi de um amigo a incumbência de trazer-lhe da Boêmia as duas melhores granadas que fosse possível encontrar". Uma delas, a mais valiosa, havia sido danificada por uma manipulação grosseira. "O tcheco que me orientava no negócio", escreve Leskov, "aconselhara-me a submetê-la a uma segunda lapidação por um famoso lapidador local, de nome Wenzel".
2) Wenzel é um artista, não um artesão - um místico, um cabalista, um poeta inspirado e um "grande supersticioso"; "homem originalíssimo", que sente nas pedras "o reflexo da vida misteriosa dos espíritos das montanhas", um homem inspirado. O velho Wenzel é judeu e mora em Praga, na Cidade Velha, em um beco próximo da sinagoga Staronová (construída no século XIII). "De coluna curvada, mantinha a cabeça erguida e olhava como um rei", escreve Leskov, "um ator que observasse Wenzel poderia usá-lo para se caracterizar magnificamente de rei Lear" (relembrando a intensa releitura que Leskov faz de Shakespeare, pelo menos desde a novela Lady Macbeth do distrito de Mtzensk, de 1865).   
3) Já não se trata mais do anel com a alexandrita, que foi esquecido - o que importa agora é o velho Wenzel e sua capacidade de reconhecer a qualidade da nova pedra (a granada tcheca que Leskov comprou para seu amigo). "Já nos conhecemos há muito tempo", fala o velho quando Leskov mostra a pedra, "eu o vi ainda em sua terra natal, nos campos secos de Merunice". De repente, a trajetória da pedra se transforma em uma analogia para a resistência dos tchecos diante dos alemães (e todos os bárbaros ao longo da história): "ele não se deixa triturar no pilão do suábio! Os piropos têm sangue de guerreiro... Fingiu, como o tcheco sob os suábios, entregou a própria cabeça, mas escondeu o seu fogo no coração: eis aqui o fogo denso e inextinguível da montanha tcheca...".

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O joalheiro de Leskov, 2

O bom ladrão crucificado, Lovis Corinth, 1883
1) Sobre a alexandrita, e mais especificamente sobre o fetiche da alexandrita transformada em anel, Leskov escreve que o anel que ele havia finalmente adquirido - propriedade de "uma das pessoas memoráveis" do reinado do imperador - era composto por três pedras: a alexandrita ao centro, "cercada de dois brilhantes puríssimos". Havia um "simbolismo", como aponta Leskov: a pedra central era o imperador e os dois brilhantes suas principais obras - "a libertação dos servos e o estabelecimento de um sistema judicial melhorado".
2) Leskov escreve que a alexandrita "tinha pouco menos de um quilate", enquanto "cada brilhante tinha apenas meio quilate". A intenção, segundo Leskov, "era fazer com que os brilhantes, representantes dos feitos, não ocultassem a modesta pedra principal, que devia lembrar a própria pessoa do nobre autor dos feitos". 
3) A descrição do anel ocupa os três breves parágrafos da terceira seção do conto - e o simbolismo da trindade imperial ecoa na forma e segue reverberando quando, abruptamente, Leskov parte para a seção seguinte. Uma alegoria messiânica: o imperador como o Cristo Russo, libertador dos servos humildes (lembrando como Leskov era obcecado também com a pintura religiosa russa, "pintura de ícones"), os brilhantes ao redor como os dois ladrões crucificados no Gólgota com Jesus (Lucas, 23, 39-43). Jesús es la obra maestra. Los ladrones son las obras menores. Por qué están allí? No para realzar la crucifixión, como algunas almas cándidas creen, sino para ocultarla (Bolaño, 2666, p. 989).

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O joalheiro de Leskov, 1

1) Num movimento que é bastante típico em sua obra, Leskov começa o conto com o motivo central (a pedra, a alexandrita, Chrisoberil Cymophone), abandona o tema, acrescenta algumas digressões e, quando o leitor já esqueceu o mote inicial, ele o resgata e finaliza a história abruptamente. Leskov (é ele que narra, é ele o amador das pedras preciosas) compra um anel com uma alexandrita - pedra raríssima, que muitos joalheiros conhecem "só de ouvir falar" - depois da morte do antigo dono, "uma das pessoas memoráveis do reinado de Aleksandr II".
2) O conto de Leskov é o resultado de uma febre, de uma mania, de uma implicância: "sempre tive a fraqueza, não sei se feliz ou infeliz", escreve Leskov em uma carta a um amigo, autor de um livro sobre pedra preciosas, "de me deixar arrebatar por algum tipo de arte. Foi assim que me apaixonei pela pintura de ícones, pelas canções populares, pela medicina, pela restauração etc. Pensei que isso tivesse passado, mas me enganei: as nossas conversas sobre o seu livro Pedras preciosas arrastaram-me para uma nova paixão, e, como de cada uma das minhas paixões sempre busquei criar algo 'de volta', agora isso está se repetindo. Sinto uma vontade irresistível de escrever um conto fantástico-supersticioso, capaz de despertar a paixão pelas pedras preciosas e, junto com ela, também a fé em sua influência misteriosa".  
3) O que há inicialmente de supersticioso no conto é a devoção ao imperador: depois da morte violenta, escreve Leskov, "diversos veneradores do falecido soberano elegeram as coisas mais variadas" para torná-lo presente na vida cotidiana. Fetiches que representem o corpo do soberano, fotos em miniatura, medalhões e, a versão mais rara, um anel com uma alexandrita engastada - uma "lembrancinha para nunca mais tirar da mão", escreve Leskov. O culto da personalidade do soberano, de seu corpo, sua mitologia e sua sobrevida simbólica - atalhos que levam diretamente à opressão, à ditadura, ao totalitarismo (Canetti, Massa e poder; Todorov, Memória do mal, tentação do bem).  

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O joalheiro de Leskov

Aleksandr II e seu cão, Milord, 1870
1) Nikolai Leskov publica, em 1884, um conto intitulado "Alexandrita (Um fato natural à luz do misticismo)". É uma abordagem da "metáfora do joalheiro" completamente diversa daquela de Sándor Márai. O conto é dividido em onze breves seções - Leskov chama o relato de "pequena comunicação", e mistura um pouco de distanciamento pseudo-científico (ao falar das pedras preciosas) com o tal misticismo prometido no subtítulo e, mais importante, com um tom alegórico, como se estivesse dizendo algo além daquilo que está, de fato, dizendo: as minas de onde se retiraram os melhores exemplares da pedra de Aleksandr II foram inundadas pelas águas de um rio transbordado.
2) A "alexandrita", conta Leskov, foi descoberta no dia em que o imperador Alexandre II atingia a maioridade ("17 de abril de 1834") - por isso a homenagem. O imperador (seu pai foi Alexandre I, que derrotou Napoleão) sofreu vários atentados ao longo de sua vida: em 1879, caminhando pelos jardins de uma guarnição militar, ele vê um jovem vindo em sua direção com um revólver - corre em zigue-zague, escapa de cinco disparos e domina o assassino; no ano seguinte, o imperador chegou atrasado a um jantar no qual onze pessoas morreram e trinta ficaram feridas por conta da explosão de uma bomba. Em março de 1881, contudo, Alexandre II não conseguiu escapar da explosão - morreu sem as pernas e com os intestinos expostos.
3) A pedra que leva o nome do imperador, escreve Leskov, é impossível de ser falsificada: com a luz do dia, a alexandrita é verde; sob luz artificial, torna-se vermelha. O joalheiro místico que Leskov encontra no Bairro Judaico de Praga, na Cidade Velha de Kafka e do golem, se surpreende ao ver a alexandrita que ele porta: Veja só que pedra! Nela a manhã é verde e a noite sangrenta... É o destino, é o destino do nobre tsar Aleksandr! (Leskov, A fraude, tradução de Denise Sales, ed. 34, p. 165).   

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O joalheiro de Márai

1) Sándor Márai ocupa um bom número de páginas com a história do médico do campo de concentração (que comecei a comentar aqui) - algo sintomático se pensarmos na extensão do livro em questão, Libertação, que não ultrapassa as 150 páginas. Talvez tenha ele próprio escutado as histórias sobre os médicos dos campos quando estava escondido nos porões de Budapeste durante a guerra - e talvez as imagens tenham colado irremediavelmente em sua mente (como a imagem daquele jovem esquizofrênico que jamais abandonou Foucault). 
2) A mulher que está no porão com Erzsébet continua a falar sobre o médico, o médico que "apenas olhava, atento, com os olhos azuis, com o olhar de quem conhecia perfeitamente o que via". O médico, diz ela, "conhecia o corpo humano como poucos", "tinha visto centenas de milhares de pessoas nos anos anteriores, quem sabe um milhão". E nesse ponto a mulher atinge uma comparação curiosa: "ele era como um joalheiro, entende?... Talvez somente um joalheiro saiba olhar para o material e ver de imediato, sem nenhum instrumento, se ele é verdadeiro ou falso, de brilho vulgar ou nobre. Era assim que o médico conhecia o corpo humano. Olhava para alguém e logo sabia se era saudável ou doente, se recuperaria a saúde em menos de oito dias ou em mais tempo" (Libertação, tradução de Paulo Schiller, p. 83).
3) A proliferação de uma metáfora: ele era como um joalheiro. Aquele que separa o verdadeiro do falso, que estabelece a hierarquia - e a ironia involuntária da mulher ao indicar um ofício tão judaico. E ainda assim a esperança - talvez também involuntária - da mulher: posso ainda ser uma pedra bruta, pode ainda restar um pouco de energia em mim, somente o tanto necessário para que o médico, ao prestar atenção, ao dedicar seu olhar ao corpo da mulher, decida, finalmente, que ela está apta a continuar, que ela tem condições de, vá lá, viver mais alguns dias. 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Raça e história

1) Antes de Tristes trópicos, Lévi-Strauss publicava, em 1952, Raça e história - um livrinho encomendado por Alfred Métraux para um projeto da Unesco de combate ao racismo. Rondando ainda o problema da civilização, Raça e história investe contra a ideia de "evolução cultural" e de "progresso", argumentando que é impossível comparar culturas - as comunidades, espalhadas pelo tempo e pelo espaço, apresentam soluções diferentes a problemas diferentes (numa variedade ampla de aspectos, que vão desde o controle dos excrementos até a adaptação com o meio). 
2) Roger Caillois, em uma resenha publicada em duas partes na Nouvelle Revue française (dezembro de 1954 e janeiro de 1955), assumiu a posição contrária: para ele, a relativização de Lévi-Strauss era um "etnocentrismo às avessas", um anacrônico decadentismo. O próprio fato de estarmos aqui, debatendo as distâncias e desenvolvendo instrumentais de análise, argumenta Caillois, é um evidente sinal de superioridade. Para Caillois, a validade da "cultura primitiva" está no estímulo à complexidade dos procedimentos levantados pela "civilização" para melhor abarcá-la.
3) No mesmo livro em que elogia Caillois - Exercícios de admiração, de 1986 -, Cioran fala de Otto Weininger, o suicida, misógino e antissemita autor de Sexo e caráter. "Suas maravilhosas monstruosidades sobre as mulheres me extasiavam", escreve Cioran, "Como pude me apaixonar por um subser? Não parava de me repetir". Em um dos ensaios de Tigres no espelho, George Steiner fala que os escritos de Cioran "demonstram um excesso de simplificação maciça e brutal", "uma facilidade sinistra", uma obra que "atesta sua própria esterilidade e cansaço" (para Steiner, basta um único contraponto para a demolição da obra de Cioran: Minima moralia, de Adorno).         

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A visão ingênua

Lévi-Strauss no Brasil, 1935
1) Mais para o final das Confissões de um burguês, Sándor Márai já apresenta um tom contrariado: passou por Paris, Londres, Leipzig, Budapeste e tantas outras cidades, acompanhou a dissolução do Império Austro-Húngaro, conheceu pessoas, ouviu histórias e, ainda assim, constata que falta autenticidade ao mundo - toda a trajetória de Márai pode ser resumida nesse desejo contraditório: manter vivo, dentro de si, um mundo que já não existe (e seus ritos, seus gestos, sua linguagem), circundado por um mundo real que é cada vez mais homogêneo (o inverso perfeito dessa situação está na obra de Bruce Chatwin).
2) Em 1935, ano de publicação das Confissões de Márai, Claude Lévi-Strauss está no Brasil, dando aulas na USP e percorrendo o interior do país atrás de índios. Chegando a um povoado, vê "restos da carcaça de uma máquina de costura", fósforos, armas de fogo - aquela visão surpreendente, escreve Lévi-Strauss em Tristes trópicos, "eliminou a poesia de minha visão ingênua". Mesmo do outro lado do oceano, a civilização surge como uma força inexorável de normalização (São Paulo era um pouco Paris, um pouco Chicago, um pouco a selva).
3) Não se sabe se Kien, o protagonista de Auto-de-fé (1936), de Elias Canetti, enlouquece com a estagnação da civilização ocidental e por isso busca refúgio na antiguidade oriental ou se, por outro lado, enlouquece precisamente nesse movimento de distanciamento (como se a razão se perdesse no abismo entre uma cultura e a outra). "Parece fora de dúvida que não nos sentimos bem em nossa atual civilização", escreve Freud em 1930, e mais adiante: "nos guardamos do preconceito que diz que civilização equivaleria a aperfeiçoamento, seria o caminho traçado para o homem chegar à perfeição" (O mal-estar na civilização, tradução de Paulo César de Souza. Obras completas, vol. 18, Companhia das Letras, 2010, p. 47 e 58). O projeto totalitário de Hitler: homogeneizar para vencer.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

O médico e o aparelho

1) Em Libertação, Sándor Márai coloca a protagonista Erzsébet em um porão de refugiados e lá, nos subterrâneos, ela conhece uma mulher sem nome que lhe conta uma história: "existe coisa pior do que a morte", a mulher diz, e Erzsébet pergunta: "O que é pior?", e a mulher responde: "O médico no campo". "Os que, logo na chegada, ficavam com os velhos, com as crianças e raquíticos se saíam bem. Eram levados aos banhos. De manhã já tinham queimado, não souberam de nada. Mas os que trabalhavam", continua a mulher sem nome, "eram levados toda semana à presença do médico, e isso era muito ruim".
2) O que a mulher coloca em questão é a percepção do médico - sempre distante, profissional, frio. "Para o meu pai ele só deu uma olhada, e o mandou para o banho". O médico "apenas olhava, atento, com os olhos azuis, com o olhar de quem conhecia perfeitamente o que via. Conhecia o corpo humano como poucos". O médico era objetivo: decidia sobre a morte e a vida, calculava as vidas em termos de produtividade - como escreve Vilém Flusser em Pós-história: "Em Auschwitz, a tendência ocidental rumo à objetivação foi finalmente realizada, e o foi em forma de aparelho" (Annablume, 2011, p. 22).
3) O médico nunca se engana, afirma a mulher sem nome: "conhece o corpo humano, sabe quanta força de trabalho resta num corpo. É capaz de medir em quilos, nervos, dias, calorias, quanto vale um corpo humano". A reincidência maníaca do corpo no discurso da mulher sem nome - gasta a linguagem, gasta o significante, esfola o real: "ele observa corpos humanos nus ao longo de anos, judeus, poloneses, holandeses, sérvios, belgas, noruegueses. Sabe também quantos meses ou semanas vai durar a força existente num corpo" (Libertação, tradução de Paulo Schiller, p. 84).   

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Um batismo comunista

1) Diretamente da Budapeste de Sándor Márai, em algum ponto dos últimos anos da década de 1950 (certamente depois da revolução frustrada de 1956), chega a notícia de um batismo comunista. O responsável pelo resgate é Juan Rodolfo Wilcock, que encontrou a nota nas páginas de algum jornal italiano que já não se sabe mais o título - tudo que sobrou foi aquilo que Wilcock colocou em um dos verbetes de seu inclassificável Fatti inquietanti. A cena poderia ter acontecido em Praga e poderia muito bem ter sido relatada por Bohumil Hrabal - ou, em tom menos farsesco e mais desesperançado, por Milan Kundera. 
2) Wilcock inicia o verbete com a frase “Em um jornal de Budapeste apareceu a estranha notícia...”, e conta a história do batismo de Mihály Czirjancis, filho de um operário, em uma cerimônia que “não se sabe se definir de religiosa”. A secretária da seção local do partido comunista serviu de madrinha, e os ritos foram realizados no pátio da fábrica. O pai e os colegas “cantaram em coro os diversos hinos comunistas húngaros”. Tudo aconteceu porque o pai "não se contentou com a fria burocracia dos trâmites no cartório" (Fatti inquietanti, Milão: Adelphi, 1992, p. 146).
3) Hrabal escreveu um conto que se chama justamente "O batismo" (Křtiny), incluído na coletânea Poupata, que reunia escritos de 1938 a 1952 (a tiragem foi destruída pela censura poucos dias depois da impressão, em 1970). Um padre dirige em direção à igreja e atropela uma cabra, que agoniza em um buraco. O padre estrangula o animal e destroça sua cabeça com uma pedra (aparentemente porque sentia medo). Coloca a cabra no banco de trás e segue viagem. Assusta seu assistente ao aparecer coberto de sangue e de terra. Lava-se e em seguida começa a preparar a sala para o batismo. Antes de começar, diz ao pai da criança: o batismo é um símbolo, mas não faça da sua vida um símbolo.  

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Canetti, Kafka, Stendhal

A primeira edição de Auto-de-fé, 1936
1) É evidente que A metamorfose - a obra-prima de Franz Kafka - atingiu em cheio a poética de inúmeros escritores, mas é particularmente interessante observar (como feito com Sándor Márai) a repercussão imediata da publicação - o relato daqueles que, como Márai, tiveram a oportunidade de tirar aquele "caderno" (a delgada primeira edição) da prateleira de alguma livraria alemã já perdida no tempo. 
2) Alguns anos depois de Márai (que encontrou o livro de Kafka em Leipzig por volta de 1923-24), foi a vez de Elias Canetti, dessa vez em Viena, nos últimos anos da década de 1920, enquanto iniciava a redação de seu romance Auto-de-fé: "eu já concluíra o oitavo capítulo do Auto-de-fé, que hoje se intitula 'A morte', quando a Metamorfose de Kafka caiu-me nas mãos. Nada mais afortunado poderia ter acontecido comigo naquele momento. Ali encontrei, na mais elevada perfeição, a contrapartida para a leviandade literária que tanto odiava: ali estava o rigor pelo qual eu tanto ansiava" (A consciência das palavras, tradução de Márcio Suzuki, p. 248).
3) E refletindo sobre a gênese de Auto-de-fé Canetti também dá sua contribuição à circulação do fantasma de Stendhal - é o autor francês que completa o "sistema de estímulos" que Canetti articulou para si próprio: "Para não me deixar arrastar para demasiado longe, lia repetidas vezes O vermelho e o negro, de Stendhal. Queria avançar passo a passo, e me dizia que deveria ser um livro severo, impiedoso tanto para comigo mesmo como para com o leitor - foi indubitavelmente Stendhal quem me exortou à clareza". Lia repetidas vezes. 

domingo, 6 de janeiro de 2013

Kafka, Márai

1) Imre Kertész, como já visto aqui, menciona em um de seus ensaios a leitura pioneira que Sándor Márai fez de Kafka na década de 1920. Mas a história continua: quando Kafka soube que alguém tinha traduzido suas narrativas ao húngaro, protestou com seu editor Kurt Wolff - "a tradução para o húngaro de suas obras, escreve Kafka na carta", escreve Kertész em seu ensaio, "ele reservava exclusivamente para seu amigo Robert Klopstock". "Esse Robert Klopstock", continua Kertész, "de origem húngara, era um amante de literatura, na verdade um médico, e seu nome aparecera uma vez ou outra nos círculos literários de imigrantes alemães nos Estados Unidos". Assim como Tchékhov, Klopstock era um médico que sofria de tuberculose.
2) "Nessa história", continua Kertész, "é como se o Kafka de carne e osso de repente penetrasse no mundo fictício de uma narrativa de Kafka. Para dar uma ideia do que se trata, seria o mesmo que, digamos, sabedor de que Thomas Mann teria traduzido um de meus livros para o alemão, eu comunicasse a meu editor que confiaria mais no meu médico pessoal, que também sabe um pouco de alemão" (A língua exilada, tradução Paulo Schiller, p. 76). O interessante é que, com apenas um gesto, Kertész consegue elogiar Márai (equiparando-o a Mann), resgatar uma minúcia histórica muito pitoresca e, finalmente, salientar a inépcia editorial do próprio Kafka (guiado mais pelo compadrio do que pela capacidade técnica).
3) Márai apresenta em primeira mão sua descoberta de Kafka - está em seu romance biográfico Confissões de um burguês: "Kafka teve uma influência especial sobre mim", escreve Márai - "encontrar Kafka foi como o encontro do sonâmbulo com o caminho reto. Numa livraria simplesmente tirei dentre os milhares de livros o caderno intitulado Verwandlung, comecei a ler, e de pronto sabia: é ele. Kafka não era alemão. Também não era tcheco. Era escritor, dos maiores, não havia possibilidade de engano, de mal-entendido" (Confissões de um burguês, tradução Paulo Schiller, p. 239). O "caderno" em questão era A metamorfose, editado em 1916 por Kurt Wolff - justamente na cidade na qual se encontrava Márai: Leipzig.      

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Os órgãos de Stálin

1) O gigante era o exército russo, escreve Sándor Márai em Libertação, e continua: a engrenagem da grande máquina se compunha dos canhões, dos órgãos de Stálin, dos aviões, dos lança-minas, das metralhadoras do exército ucraniano (tradução de Paulo Schiller, Companhia das Letras, 2009, p. 36). Órgãos de Stálin? Os rins de Stálin, a bexiga de Stálin? A expressão chamou minha atenção primeiro pela quebra na lógica da enumeração e, segundo, por me lembrar de um livro de Gert Ledig (1921-1999) intitulado justamente Die Stalinorgel.
2) O "órgão de Stálin" é um Katyusha, um lançador de foguetes portátil transportado em um caminhão. A profundeza e amplitude de um termo ou expressão não cansam de impressionar. O apelido do Katyusha foi dado pelos alemães - Stalinorgel: os tubos do maquinário lembravam os segmentos dos órgãos utilizados nas igrejas. A ironia de uma imagem-dialética: une-se o silêncio e a sacralidade das igrejas ao caos ensurdecedor das trincheiras a partir de um significante compartilhado: órgão. Uma dissonância abrupta, desconfortável. E mais: indiretamente, se coloca também o corpo em cena - um corpo repleto de órgãos -, última partícula de resistência diante da máquina de guerra.
3) Michael Hofmann, que traduziu Die Stalinorgel - o livro de Gert Ledig - para o inglês, afirma no prefácio que a obra é a resposta de Ledig ao livro de Ernst Jünger sobre a I Guerra Mundial, Tempestades de aço (de 1920). Hofmann traduziu também esse livro de Jünger ao inglês (além de obras de Herta Müller, Joseph Roth e Thomas Bernhard). Aquilo que em Jünger era exaltação da coragem (e da capacidade da guerra de forjar um caráter forte) transforma-se, em Ledig, na gratuidade e no absurdo da violência - não há engrandecimento da alma na provação, como queria Jünger, apenas destruição do corpo, destruição de um corpo repleto de órgãos.          

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Tive que fugir

"Seremos uma cidade limpa / Comemos pombos novamente", Budapeste, 2009
1) Aleksandar Hemon diz que não há uma razão específica que explique a troca da língua bósnia pelo inglês - porém, mais adiante, reconhece a distância entre os idiomas como "um sintoma do trauma" e reconhece, indiretamente, que sua escolha representa o "fechamento do espaço". Danilo Kis, por outro lado, não apenas manteve a língua materna em sua ficção como fez dela seu ganha-pão (dando aulas) durante um bom tempo na França (Kundera, também na França, começou o exílio (1975) escrevendo ainda em tcheco e, anos depois, passou ao francês).  
2) O alemão de Herta Müller é um signo de resistência, ou melhor, uma fonte de preconceito, trauma e violência que é transfigurada, na ficção, em signo de resistência. A ficção de Müller é moldada pela violência contra a minoria de fala alemã na Romênia da ditadura comunista - e é essa resistência da língua que ela encontra em Cioran, por exemplo, e que também dá força a sua própria obra (Tudo o que tenho levo comigo: "tudo" só pode ser a linguagem).
3) Imre Kertész usa várias vezes em seus ensaios a frase que tirou dos diários de Sándor Márai: tive que fugir da Humgria para ser um escritor húngaro. Vivendo em Berlim, com vinte e um anos, Márai faz amizade com um alemão que, em sua diferença, lhe dá uma lição sobre o próprio: "na sua presença e no seu pensamento eu intuía o 'segredo alemão'", escreve Márai, "a conjuntura dificilmente delimitável da língua, do ambiente e da memória que faz alguém se tornar alemão de modo tão desesperançado quanto decidido, como eu jamais fora saxão nem morávio, embora fosse, sem dúvida, húngaro" (Confissões de um burguês, tradução de Paulo Schiller, p. 290).     

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Szindbád volta para casa

Mitteleuropa, 1914
Entre os famosos húngaros que viviam no exterior, encontramos dramaturgos como Ferenc Molnár e Melchior Lengyel; compositores como Béla Bartók, Ernst von Dohnányi e Emeric Kálmán; os regentes George Szell, Georges Sebastian, Eugene Ormandy e Tibor Serly; violinistas como Joseph Szigeti; diretores e produtores de cinema como sir Alexander Korda, Géza Bolváry, Michael Curtiz e Joe Pasternak; jornalistas como Theodor Herzl e Arthur Koestler; filósofos literários como Georg Lukács; físicos como Eugene Wigner, John von Neumann, Georg Békésy, Leo Szilárd, Theodore von Karman e Dennis Gabor; químicos como Georg de Hevesy; médicos como Robert Bárány; matemáticos como Frigyes Riesz e Lipót Fejér; atores como Paul Lukas; atrizes como Vilma Bánky; fotógrafos como André Kertész, Márton Munkácsi e Brassaï; filósofos como Karl Kerényi e Aurel Kolnai; arquitetos como Marcel Breuer e László Moholy-Nagy; psicanalistas como Franz Alexander; economistas como lorde Thomas Balogh; e sociólogos como Karl Mannheim.
John Lukacs. Budapeste 1900. Tradução de Ana Luiza Dantas. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009, p. 172.

1) Em 1940, Sándor Márai publicou Szindbád volta para casa, uma ficção inspirada no trabalho de Gyula Krúdy. Márai era vinte e dois anos mais jovem que Krúdy - o conhecia pessoalmente e se dizia herdeiro de sua prosa, ao ponto de escrever Szindbád (que é a história do último dia da vida de Krúdy) usando "o estilo do mestre". O romance de Márai foi determinante na redescoberta de Krúdy sete anos depois de sua morte.    
2) A porosidade das fronteiras, das línguas e dos tempos: ao mesmo tempo em que estava intimamente relacionado com aquele que elegeu como seu precursor húngaro (Krúdy), Márai era atravessado por uma série de estímulos estrangeiros - a fala esvolaca e romena dos parentes distantes e daqueles que encontrava quando viajava para o interior, além de toda literatura alemã, austríaca e francesa que podia encontrar. 
3) Essa porosidade é importante também para as obras de Danilo Kis (nascido em 1935), Herta Müller (1953) e Aleksandar Hemon (1964) - como Márai, oriundos de geografias incertas e retalhadas. Diferentes gerações e um ponto recorrente: os deslocamentos forçados, imagem do brutal descompasso entre o desejo individual e os rumos da história - um desejo que, ao contrário das fronteiras cartográficas, não pode ser circunscrito ou demarcado.