segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Autoridade e escuta

Daniel Paul Schreber, 1842-1911
1) Para Freud, toda transferência gera uma contra-transferência - e ambas devem ser utilizadas para a criação de uma cena analítica propícia à revelação (uma cena que permita a inter-dependência entre aquele que fala e aquele que escuta). Assim foi no caso da amizade de Freud com Fliess, e também de Freud com Jung ou com Adler, e todas essas cenas de transferência e contra-transferência tiveram o conflito e a ruptura como conclusão. O que estava em jogo era o questionamento de uma figura de autoridade, que jamais poderia encaixar perfeitamente com a figura daquele que escuta ou que precisa do discurso do outro (o conflito nasce da impossibilidade de Freud, Fliess, Jung ou Adler de ocuparem simultaneamente a posição de autoridade e de escuta). 
2) A sobreposição das duas posições, autoridade e escuta - ou atividade e passividade -, pode gerar problemas, como mostram as Memórias de um doente dos nervos de Schreber (o livro, surgido em 1903, teria sido apresentado a Freud justamente por Jung, que também escreveu um ensaio de interpretação - assim como tantos depois deles, desde Canetti até Roberto Calasso e Slavoj Zizek). A posição única de Schreber (um paranoico que toma a palavra de forma lúcida para registrar seu delírio) é reforçada pelo fato de que sua doença é uma espécie de reflexo ou reconstrução de uma posição de poder, pois é sua nomeação para um cargo de extremo prestígio que desencadeia os sintomas mais severos (esse duplo posicionamento, do juiz que ficcionaliza uma posição subalterna, é encenado em parte também por Salvatore Satta em O dia do juízo. O caso Schreber também funcionará como uma espécie de catalisador da articulação entre paranoia e homoafetividade que perseguia Freud desde o início de sua amizade com Fliess.
3) Carlo Ginzburg escreve que retirou de Auerbach a lição de "ler lentamente", aplicando-a a textos não-literários, mais especificamente os relatórios sobre os interrogatórios da Inquisição. Nesse texto que é uma espécie de resumo de sua trajetória, Ginzburg fala da "possibilidade de decifrar nos documentos inquisitoriais não apenas as superposições dos juízes, mas também (e isso era muito menos esperado) as vozes, expressões de uma cultura irredutivelmente diferente, dos réus". E mais: Ginzburg pensava na feitiçaria como "instrumento elementar da luta de classe". Mas no caso dos "andarilhos do bem", afirma Ginzburg, o caso foi um pouco diferente: durante um período de cinquenta anos, é possível acompanhar, como "em câmera lenta", escreve Ginzburg, a progressiva mescla do discurso do juiz com o discurso do camponês interrogado. O discurso dos andarilhos "era, para os inquisidores, incompreensível", e é "essa falta de comunicação que faz aflorar um estrato de crenças profundas e ocultas: um culto extático, centrado na fertilidade, que ainda era vivíssimo entre o século XVI e o seguinte, entre camponeses e camponesas numa região como o Friul, situada nos confins norte-orientais da Itália" ("Feiticeiras e xamãs", O fio e os rastros, tradução de Rosa Freire d'Aguiar e Eduardo Brandão, Companhia das Letras, 2007, p. 294-310).    

domingo, 29 de dezembro de 2013

Bruxas e paranoicos

Dürer, As quatro feiticeiras, 1497
1) Em suas cartas a Fliess, Freud frequentemente reforça um tema recorrente em sua obra: a ideia de que a psicanálise toca forças arcaicas com um instrumental moderno. Na carta de 17 de janeiro de 1897: "O que diria se eu lhe contasse que toda a minha novíssima pré-história da histeria já era conhecida e foi publicada mais de cem vezes, embora há muitos séculos? Você se lembra de que eu sempre disse que a teoria medieval da possessão, sustentada pelos tribunais eclesiásticos, era idêntica à nossa teoria de um corpo estranho e da divisão da consciência? Mas por que será que o demônio que se apossava das pobrezinhas invariavelmente abusava delas sexualmente, e de maneira repugnante? Por que é que as confissões delas, sob tortura, são tão semelhantes às comunicações feitas por meus pacientes em tratamento psíquico?" (A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess, 1887-1904. Edição de Jeffrey Masson, tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Imago, 1986, p. 225).
2) Na carta seguinte, de 24 de janeiro de 1897, Freud escreve: "A ideia de trazer as bruxas à cena está ganhando força. (...) A história do demônio, o vocabulário dos palavrões populares, as cantigas de roda e costumes de infância - tudo isso vai agora adquirindo significado para mim. (...) Estou começando a apreender uma ideia: é como se, nas perversões, das quais a histeria é o negativo, estivéssemos diante de um remanescente de um culto sexual primitivo (...) uma religião demoníaca primitiva, com ritos praticados em segredo, e compreendo a terapia rigorosa aplicada pelos juízes das bruxas. Os elos de ligação são abundantes. Outro afluente dessa corrente de ideias provém da consideração de que existe uma classe de pessoas que, até os dias de hoje, conta histórias como as das bruxas e as de meus pacientes; ninguém lhes dá crédito, mas a confiança que essas pessoas tem em suas histórias é inabalável. Como você deve ter adivinhado, refiro-me aos paranoicos" (p. 228).   
3) Freud apresenta portanto uma espécie de sobreposição da prática psicanalítica no contexto medieval das bruxas - e o paralelo indicaria, por exemplo, a possibilidade de pensar a transferência entre juiz e bruxa, ou ainda, a carga de "realidade" nas "confissões" das bruxas (assim como se pode pensar a carga de "realidade" nos relatos de abusos e violações nos pacientes de Freud). Esse é o nó central de parte das pesquisas iniciais de Carlo Ginzburg: em Os andarilhos do bem, por exemplo, de 1965, ele escreve que "a riqueza da documentação friulana permite reconstruir esse processo", ou seja, o processo progressivo de distorção dos relatos das "bruxas" em direção a uma demonologia oficial, desenvolvida pela Inquisição, "mostrando como um culto de características nitidamente populares, como o que tinha o seu centro nos andarilhos do bem, foi pouco a pouco se modificando sob a pressão dos inquisidores. Mas essa discrepância existente entre a imagem proposta pelos juízes nos interrogatórios e aquela oferecida pelos acusados permite alcançar um estrato de crenças genuinamente populares, depois deformado, anulado pela superposição do esquema culto" (tradução de Jônatas Batista Neto, Companhia das Letras, 1988, p. 8).

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Você

Mark Tansey, A short history of modernist painting, 1982
1) É a partir da relação com Fliess que Freud coloca em circulação a teoria da sedução, a ideia de que todo trauma era gerado por uma cena real; e também foi com Fliess, na relação epistolar deles, que Freud aos poucos deixou de lado essa hipótese, observando que boa parte das cenas de trauma relatadas pelos pacientes eram fantasia, criação, delírio (abrindo os domínios da psicanálise à intervenção da ficção, como acontecerá também na dimensão da metapsicologia).
2) Tensa relação com Fliess - só sobraram as cartas enviadas por Freud, que queimou aquelas enviadas por Fliess (mas vários dos manuscritos anexados por Freud à correspondência se perderam, como foi o caso dos esboços sobre a dreckologia). O deslizamento teórico de Freud do "real" em direção à "fantasia" na teoria da sedução encontra eco também na relação dele com Fliess: o desenvolvimento da psicanálise como discurso passa por uma ficcionalização da posição de escuta e de interpretação, pois Fliess é tanto uma figura de autoridade (cuja aprovação é buscada por Freud) quanto uma escuta a ser seduzida, doutrinada, cultivada. "Você é meu amigo, meu confidente", escreve Freud em tantas cartas.
3) "Você é minha mulher", "você é meu mestre", comenta Lacan no seminário sobre as psicoses (1955-1956, tradução de Aluísio Menezes, Zahar, 1988, p. 310), ou seja, você é na medida em que eu permito que meu discurso possibilite que você seja, mas um discurso que só pode se sustentar ou se fundar a partir dessa referência ao outro. Montaigne: "Só falo dos outros para melhor falar de mim" ("Sobre a educação das crianças", Os ensaios: uma seleção, tradução de Rosa Freire d'Aguiar, Companhia das Letras, 2010, p. 88).  

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Dreckologia

Wilhelm Fliess, 1858-1928
"Marcho lenta e resolutamente pela dreckologia", escreve Freud a Wilhelm Fliess em 29 de dezembro de 1897. O termo é um neologismo criado por Freud a partir da palavra ídiche equivalente a merda, Dreck. Trata-se, portanto, de sua merdologia, uma espécie de caminho teórico paralelo, ligado ao campo que Freud denominará de "metapsicologia" (mais aberto à especulação e à ficção). A dreckologia envolvia sobretudo interpretação de sonhos - tanto os de Freud quanto os de alguns de seus pacientes -, sonhos que com frequência envolviam fantasias de ordem escatológica (como o paranoico que imagina que colocam merda em sua comida). "Hoje lhe envio o número 2 dos relatórios 'dreckológicos'", escreve Freud na carta seguinte, de 4 de janeiro de 1898. "O nº 1, que estou conservando comigo", continua Freud, "contém sonhos desvairados que dificilmente seriam de seu interesse; eles fazem parte de minha auto-análise, que ainda continua tateando na mais absoluta escuridão" (A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess, 1887-1904. Edição de Jeffrey Masson, tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Imago, 1986, p. 291-292).
*
A dreckologia de Freud podia portanto abarcar tanto a interpretação ampla dos sonhos (e nesse sentido a dreckologia de 1897 é uma preparação para a Interpretação dos sonhos de 1900) como a consideração restrita dos sonhos que envolviam o "gerenciamento de dejetos" (motivo freudiano por excelência, não apenas por conta da solicitação evidente das funções de absorver e defecar, mas também pela solicitação do exercício mais subterrâneo de constante interesse pelas operações "sujas", recalcadas - seja na dimensão cultural, seja na dimensão pessoal. 

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Cabeça e estômago

Jonas no ventre da baleia, escultura, IV d.C., Roma, Museo del Laterano
1) Paul Valéry considerou também o outro lado - ou um lado suplementar - da questão da assimilação - não apenas aquele que diz respeito ao leão soberano, ativo, que digere o carneiro. No caso de Monsieur Teste, por exemplo, a parte ativa, ou ainda, a parte criativa, aquele que atua e é responsável pela exploração da linguagem, não é uma entidade que assimila, mas uma entidade que é assimilada, que vive no interior de outra entidade (mas não no estômago, como Jonas, e sim no crânio, como Atena).
2) Sabemos que Valéry estava irremediavelmente envolvido com a questão do pensamento como artefato maquínico e seu posicionamento físico no interior do crânio - tudo isso mediado por Descartes, cujo crânio Valéry teve em suas mãos. Em Monsieur Teste, Teste pode ser lido como cabeça - tête - e como texto - texte -, e as duas tentativas se complementam, fiéis ao mostrar o projeto de Valéry de uma ficção pura, autorreferente como uma máquina. A ficção de Valéry toma a cabeça como cenário (o pensamento, o cogito) e, nisto, é precursora de Beckett, que apresenta o cenário de Fim de partida como um crânio sem pele e sem carne, por onde passam fantasmas e figuras mortas (duas janelas como olhos e a porta como a boca escancarada).
3) Mas esse estado de puro pensamento de Monsieur Teste - o estado bruto de uma cabeça que se resolva e se materialize em texto - é inatingível sem um trabalho de mediação, ou seja, sem um trabalho de testemunho (por isso que Agamben fala de Teste também como testis, testemunha, no ensaio "L'io, l'occhio, la voce", em La potenza del pensiero). Valéry é esse mediador, que vive no interior dessa entidade e a partir dela configura seu texto. Procedimento semelhante está em A casa de Puchkin, de Andrei Bitov: o narrador se posiciona no interior de uma entidade que o assimila - Puchkin, e a casa de Puchkin como esse estômago ou esse crânio -, e sua narrativa, seu texto, é uma complexa elaboração em torno da questão de ser assimilado, de desejar ser assimilado para aí reconhecer sua voz.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Artista da fome

Rubens, Saturno, 1636
1) Na metáfora de Valéry do leão e do carneiro - e naquela de João do pecador prestes a ser vomitado pela divindade - é evidente a preponderância daquele que retém, daquele que absorve e que de certa forma mantém um corpo estranho em gestação. O gesto artístico se configura como a manipulação e a decisão sobre a destinação de um dejeto, que é precisamente esse corpo estranho.
2) No caso do artista da fome de Kafka, do conto de mesmo nome (publicado em 1922), se vê a elaboração desse paradigma da gestação e da criatividade como corpo estranho, uma elaboração que segue os moldes daquela já exposta em O processo (romance escrito entre 1914 e 1915 mas só publicado em 1925). Kafka coloca o próprio processo numa situação limite, numa situação insustentável, uma vez que o caluniador lança falso testemunho sobre si próprio - ou seja, Josef K. é simultaneamente aquele que instaura a infâmia e aquele que a sofre, retribuindo a falsa acusação com a morte de um acusado que jamais fez coisa alguma além de acusar a si próprio (Agamben disseca a questão em um dos ensaios de Nudità). 
3) O artista da fome reencena a mesma lógica em outra chave: seu objetivo é "fazer arte" sem a interferência de qualquer corpo estranho, de qualquer dejeto ou interferência - nesse sentido, o gesto do artista da fome é análogo à fórmula de Bartleby, "prefiro não fazer", pois é autofágica, gerando uma cena artística cujo único horizonte é apontar para seu próprio esvaziamento (no caso do artista da fome, e aí está o gênio de Kafka, aponta para um esvaziamento material e literal - o próprio tema ou conteúdo da história espelha seu procedimento).
 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

O terreno e a semente

O mundo existirá sempre a partir da metáfora que o configura. "O leão é feito de carneiro assimilado", anotou um dia Paul Valéry, uma declaração que evoca a célebre passagem do Apocalipse, o delírio de João: "Conheço tuas obras, sei que não és nem quente nem frio; assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca" (3; 15-16). Tensa convivência entre o que é exterior e o que é interior - o Cordeiro de Deus é tanto a instância passiva que aceita a morte quanto a entidade atemporal que tudo abarca, que tudo assimila e que decide quem será vomitado (leão e cordeiro se confundem entre o amor e a justiça). A passagem ecoa também as palavras de Cristo na Parábola do Semeador: "o semeador saiu a semear", uma parte das sementes lançadas foi comida pelas aves, outra parte caiu entre pedras, outra entre espinhos; "outra caiu na boa terra e dava fruto, havendo grãos que rendiam cem, outros sessenta, outros trinta por um; quem tem ouvidos, ouça" (Mateus, 13; 1-9). O foco já não está tanto na digestão, como era o caso para Valéry, mas na expulsão, na excreção - vomitar, expelir, dar à luz, defecar. Um contemporâneo de Valéry - Ludwig Wittgenstein -, ao comentar o trabalho de um pensador recém-falecido (uma carcaça a ser devorada), retoma a metáfora: "Minha originalidade, se essa é a palavra certa, é uma originalidade do terreno, não da semente (talvez eu não possua nenhuma semente que me seja própria). Jogue uma semente no meu terreno e ela crescerá de um modo diferente de qualquer outro terreno. A originalidade de Freud é desse mesmo gênero, acredito" (Culture and Value (Vermischte Bemerkungen), Traduzido do alemão ao inglês por Peter Winch, Oxford: Blackwell, 1978, p. 36).    

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Adeus, Lenin

John D. Rockefeller, 1839-1937
1) Sabemos que Dupin, o detetive de Edgar Allan Poe, resolvia os crimes sem sair de casa, lendo, relendo, montando e remontando as notícias dos jornais. Um método de investigação que pressupõe o tecido social como caótico, e a imprensa como uma espécie de estação captadora e irradiadora de absurdos que não compreende totalmente. Pereira, o personagem de Antonio Tabucchi, percebe que essa é também a lógica do sistema totalitário, e antes de desaparecer (antes de abandonar Portugal e seu nome de batismo) enxerta nesse sistema uma notícia falsa, apócrifa, que é ao mesmo tempo uma piada e um testamento.
2) Discutindo o filme O show de Truman em seu livro Lacrimae rerum, Slavoj Zizek fala dessas múltiplas camadas de falsidade que configuram o mundo dito real, dando, em seguida, um exemplo histórico bastante revelador: "O próprio Lenin não viveu, nos últimos dois anos de sua vida, num ambiente controlado muito similar, em que, como hoje sabemos, Stalin imprimia para ele uma edição especialmente preparada do Pravda, expurgada de todas as notícias sobre as disputas políticas sob a alegação de que o camarada Lenin deveria descansar, em vez de ser perturbado por provocações desnecessárias?" (Lacrimae rerum, tradução de Isa Tavares e Ricardo Gozzi [a tradução desse livro é um caso complicado, como pode ser visto aqui e aqui], Boitempo, 2009, p. 154).
3) Saramago, ao comentar a melancolia de Ricardo Reis diante das notícias impostas pelos jornais, escreve que "muito diferente da sua é a situação daquele ancião americano que todas as manhãs recebe um exemplar do New York Times, seu jornal favorito, o qual tem em tão alta estima e consideração o seu idoso leitor, com a bonita idade de noventa e sete primaveras, a precária saúde dele, o seu direito a um fim de vida tranquilo, que todas as manhãs lhe prepara essa edição de exemplar único, falsificada de uma ponta à outra, só com notícias agradáveis e artigos optimistas, para que o pobre velho não tenha de sofrer com os terrores do mundo e suas promessas de pior" (O ano da morte de Ricardo Reis, Companhia das Letras, 1988, p. 265). O pobre velho em questão, nos informa Saramago, é John D. Rockefeller, "o único habitante do mundo que dispõe de uma felicidade rigorosamente pessoal e intransmissível". 

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O nome da mãe

Alois Hitler, 1837-1903
Como diríamos no estilo californiano, Kafka tinha um grave problema de atitude em relação ao pai. Quando se identificou com "Lowy", assumindo o sobrenome da mãe, Kafka colocou-se numa série que inclui Adorno (que também trocou o sobrenome do pai, Wiesengrund, pelo da família da mãe), para não citar Hitler (que era Schicklgruber) - ambos pouco à vontade para assumir o papel de portador do sobrenome paterno. É por isso que um dos pontos importantes da carta de Kafka ao pai é a afirmação de que poderia aceitar (a pessoa de) seu pai, estabelecer com ele uma relação não traumática, caso ele fosse seu amigo, irmão, chefe, até mesmo sogro, mas não seu pai.

Slavoj Zizek. Em defesa das causas perdidas. Tradução de Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 101.
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O pai de Hitler, Alois, era filho ilegítimo de uma mulher que tinha quarenta e dois anos na ocasião de seu nascimento, Maria Anna Schicklgruber. Isso aconteceu em 1837. O espaço para o nome do pai em sua certidão de batismo foi deixado em branco. Quando Alois tinha cinco anos, um homem, Johann Georg Hiedler, chegou e casou com sua mãe. Cinco anos depois, Alois foi morar com o irmão de Johann Georg, Johann Nepomuk Hiedler. Ainda era Alois Schicklgruber, e assim foi para Viena, anos depois, trabalhar como sapateiro até se juntar ao Exército. Somente em 1876, aos trinta e nove anos, Alois Schicklgruber solicitou à Justiça a mudança de nome, declarando, com o auxílio de testemunhas, que o padrasto, Johann Georg Hiedler, era seu pai. No ano seguinte, 1877, seus documentos são renovados e Alois Schicklgruber torna-se Alois Hitler, embora não se saiba em que ponto do trajeto o Hiedler de origem transformou-se em Hitler. Um nome de tão amplas e tenebrosas ressonâncias nasceu não apenas de uma cena inaugural de ilegitimidade e bastardia, mas também de um lapso, de um equívoco ou desatenção de registro.     

domingo, 24 de novembro de 2013

Misericórdia e soberania

Nicolau I, 1796-1855
1) Duas cenas análogas de quase morte: Dostoiévski diante do pelotão de fuzilamento em 1849, Maurice Blanchot capturado pelos nazistas e salvo no último momento por uma explosão (eis o "instante da minha morte" que ele ficcionaliza em 1994). Um fio subterrâneo liga o regime repressivo de Nicolau I e a ocupação nazista da França (um fio que passa pelo 18 de brumário de Marx e pela Educação sentimental de Flaubert, ambos fixados no fevereiro de 1848 em Paris). Tanto a revolta de Dostoiévski quanto a repressão de Nicolau I foram em parte motivados pelos eventos revolucionários franceses. 
2) Essa cena de quase morte de Dostoiévski prefigura o nascimento da biopolítica segundo Foucault - a intensificação do "fazer viver" sobre o "fazer morrer", ou seja, a manutenção e coerção mais do que a eliminação. Não tanto a decisão entre um extremo e outro, a definitiva declaração de "condenado" ou "absolvido", mas esse espaço indeterminado de dúvida, esse espaço que contém Dostoiévski simultaneamente vivo e morto, em suspenso. É nesse espaço que o poder do soberano se ergue em triunfo, e segue reverberando mesmo depois do perdão, da misericórdia. Pois esse ato de perdão deve ser carregado, como um fardo, ao longo de todo o resto de vida do sobrevivente.
3) "A noção de Misericórdia é estritamente correlativa à de Soberania", escreve Slavoj Zizek, "apenas o portador do poder soberano pode conceder misericórdia" (O amor impiedoso, tradução de Lucas Mello Carvalho Ribeiro, Autêntica, 2012, p. 202). Há uma analogia estrutural também entre o par formado pelo regime pré-biopolítico e o regime biopolítico (e a zona cinza entre um e outro figurada na cena do perdão de Dostoiévski) e o par formado por Zizek entre "a rigorosa Justiça judaica" (pré-biopolítico) e a "Misericórdia cristã", uma misericórdia análoga àquela de Nicolau I, pois esconde sob sua generosidade uma carga imensa de culpa e dívida ("o nome freudiano para tal pressão excessiva, que nunca podemos quitar, é, claro, supereu", escreve Zizek). Talvez esse seja o caminho que permita uma sobreposição crítica entre a faceta religiosa e a faceta política (revolucionária) da ficção de Dostoiévski (e de discípulos contemporâneos seus, como Coetzee (o cruzamento entre política e religião em livros como À espera dos bárbaros ou A infância de Jesus, por exemplo) e Aleksandar Hemon (o projeto do Projeto Lazarus leva em conta justamente essa articulação entre destino (subjetividade) e revolução (História, sobreposição de temporalidades, contato entre os anarquistas de Chicago em 1908 e a guerra da Bósnia em 1992)). 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Lendo Goethe no Congo

André Gide no Congo, 1927
Em janeiro de 1928, com o objetivo de dar uma conferência, André Gide vai a Berlim. Ele se encontra com Walter Benjamin em seu quarto de hotel e eles conversam durante duas horas. Benjamin foi enviado pelo Die literarische Welt, e foi o único jornalista que Gide aceitou receber. A conversa aos poucos caminha em direção à figura de Proust, a amizade de Gide com Proust, a tradução que Benjamin está fazendo da Recherche, e, finalmente, o ato de traduzir. Benjamin escreve:
Gide fez o que pôde, como tradutor, para popularizar Conrad, também se engajando de forma crítica com Shakespeare. Ouvimos falar de sua tradução magistral de Antony and Cleopatra.
Citando suas palavras, Benjamin diz que Gide não encontrou em Berlim a tranquilidade necessária para elaborar sua conferência. "Mas eu gostaria de lhe dizer algo sobre minha relação com a língua alemã", diz Gide, escreve Benjamin. Depois de um "intensivo e extensivo" período de estudo do alemão, Gide abandona o idioma, abruptamente, durante dez anos. "Minha atenção foi totalmente capturada pelo inglês", afirma ele, e continua:
Então, ano passado, no Congo, eu finalmente abri um livro alemão, depois de tanto tempo - As afinidades eletivas, e me dei conta de uma coisa: a leitura não ficou mais difícil, como eu imaginava, mas mais fácil.
Benjamin escreve que o tom de Gide ficou "insistente" quando ele afirmou que não foi a afinidade do inglês com a alemão que produziu essa facilidade, mas o fato de Gide ter se sentido "dramaticamente repelido de minha língua materna". Para traduzir, afirma Gide, escreve Benjamin, ou mesmo para dominar uma língua estrangeira, não importa tanto a língua escolhida, mas a capacidade de abandonar sua própria língua, sua língua de origem (Walter Benjamin, "Conversation with André Gide", Selected Writings, vol. 2, 1927-1934, traduzido ao inglês por Rodney Livingstone, Harvard University Press, 1999, p. 91-97).

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Vasari, Schwob, Balzac

 1) Na Vida que escreve para Paolo Uccello, que é em grande medida uma reescrita da Vida feita por Giorgio Vasari no século XVI, Marcel Schwob acrescenta um desvio: a obra suprema de Uccello, que Vasari registra como finalizada e tendo como motivo Cristo e São Tomé, é "apenas um emaranhado de linhas". Schwob prepara o terreno dessa revelação afirmando que "o Pássaro envelheceu", ou seja, Uccello, e que "ninguém compreendia mais seus quadros", "viam apenas uma confusão de curvas". Aqueles que observavam as obras da velhice de Uccello "não reconheciam mais nem a terra, nem as plantas, nem os animais, nem os homens" (Vidas imaginárias, tradução de Duda Machado, Ed. 34, 1997, p. 99-100).
2) Vasari fala da fascinação de Uccello com a perspectiva e da quantidade de pequenos detalhes problemáticos (escorços, chapéus, colunas) que o pintor deliberadamente buscava em seu trabalho. Uccello, nesse sentido, foi uma espécie de precursor de Descartes, em seu fascínio com a ótica, a cartografia e a geometria. Existe um elo possível entre a sensibilidade de Vasari para o artista maníaco - como Uccello, que abandonou o mundo real e caminhou progressivamente em direção a um mundo ideal, mas que jamais abandonaria a figuratividade e a coerência das imagens (isso lhe era historicamente inacessível) - e a sensibilidade de Schwob para o mesmo personagem, e a ficção de Schwob indica que esse elo está na Obra-prima desconhecida de Balzac.
3) No conto de Balzac, existe a mesma "confusão de curvas", o mesmo "emaranhado de linhas" que Schwob apresenta na obra final de Uccello (que foi terminada, que era "visível", mas que se perdeu, conta Vasari). Mas antes desse momento final de identificação há uma série de pistas na ficção de Schwob que reforçam um vínculo mais subterrâneo, centrado na figura feminina. Isso é fundamental porque a loucura de Frenhofer, o pintor de Balzac, está ligada ao corpo de uma mulher, à carne, ao desejo impossível de criar a carne através da tinta (daí a ideia de "pintura encarnada" no comentário de Didi-Huberman). É nessa impossibilidade que nasce diante do corpo feminino que o Uccello de Schwob se une ao Frenhofer de Balzac: Uccello se apaixonou, conta Schwob, e levou Selvaggia (esse era seu nome) para casa; "não havia o que comer na casa de Uccello", escreve Schwob; "Selvaggia não ousava dizer a Donatello nem aos outros. Ela se calou e morreu".  
Giorgio Vasari, 1511-1574

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Sonhos de sonhos

Van Gogh, Descanso do trabalho, 1890
1) Em um de seus nove ensaios sobre Dante, aquele sobre a fome de Ugolino (que Italo Calvino, em Por que ler os clássicos, seleciona como o ensaio emblemático do contato de Borges com a tradição literária italiana), Borges fala da incerteza, a incerteza que marca a imortalidade de Hamlet (louco e são, simultaneamente) e que marca a "estranha matéria" da qual é feito Ugolino, imortal no espaço entre devorar e não devorar seus filhos (a própria ideia da "estranha matéria da qual é feito Ugolino" é uma citação shakespeareana, que remete, também ela, como que reforçando o campo simbólico da ideia que Borges enuncia, ao sonho, à incerteza e ao caráter instável da percepção e da verdade). Borges escreve que Dante sonhou Ugolino entre duas agonias possíveis - comer os filhos, morrer de inanição -, e que esse sonho de Dante é sonhado pelas "gerações vindouras", um sonho que certamente nos alcança e certamente nos ultrapassará.
2) Vasari fala muito indiretamente dos sonhos dos artistas em seu Vidas dos artistas, porém, em paralelo a essa esquiva, existe a construção de um espaço simbólico que diz respeito à revelação, à visão diferenciada e à abrupta iluminação dos artistas (glória, grandeza, espanto, maravilha, entre muitos outros termos, funcionam para Vasari como essas marcas de passagem entre um estado inicial da arte e um profissional, estabelecido por Cimabue - na Vida de Cimabue Vasari cita Dante, o canto XI do Purgatório). Na Vida de Paolo Uccello, por exemplo, Vasari insiste no registro dos devaneios do pintor (signo tanto de sua capacidade de trabalho e de inovação quanto de sua incapacidade para os negócios), devaneios que levavam Uccello a um nível abstrato de observação do real, em busca das regras ocultas da perspectiva.
3) O sonho ainda não é para Vasari, como é para Borges, um veículo da transmissão cultural e artística. Na reescrita que propõe das Vidas de Vasari, Marcel Schwob, em Vidas imaginárias, dá um passo em direção a essa percepção, e a partir daí pode se perceber parte dos motivos que levaram Borges a exaltar a poética de Schwob. Quem recolhe todos esses fios e os encaixa em um único corpo ficcional é Antonio Tabucchi, em 1992, com Sonhos de sonhos. O livro é um inventário de verbetes biográficos (Freud, Caravaggio, Rimbaud, entre outros) que se resolve não na dimensão historiográfica (mesmo apócrifa, como acontece em Schwob ou Borges), mas na dimensão onírica, dentro da qual inúmeros pontos-chave das poéticas dos artistas biografados abandonam o rigor cronológico e se condensam em imagens delirantes (criadas por Tabucchi).  

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Schwob e Vasari

1) Baseado sobretudo no Vidas dos artistas de Vasari, Marcel Schwob escreve sua versão da vida de Paolo Uccello - o pintor florentino é uma das vidas imaginárias que Schwob apresenta em seu livro Vidas imaginárias, publicado originalmente em 1896 (o ano que Oscar Wilde apresenta Salomé e Alfred Jarry apresenta o Ubu Rei, ambos em Paris). O livro de Vasari foi certamente um dos ingredientes fundamentais para Schwob configurar seu Vidas imaginárias, o que permite rastrear a presença de Vasari também em obras como a História universal da infâmia, de Borges, a Sinagoga dos iconoclastas, de Wilcock, a Literatura nazi na América, de Bolaño, e as Vidas minúsculas, de Pierre Michon (ou a vida dos homens infames, de Michel Foucault, ou mesmo a catalogação de vidas irrisórias que Georges Perec faz em Vida, modo de usar). 
2) Vasari, no entanto, está interessado em historiografia, e Schwob está interessado em ficção - e há um trecho da vida de Paolo Uccello que exemplifica essa distância. Schwob e Vasari partem do mesmo fato, aquele que teria sido o último projeto de Uccello: "um São Tomé buscando a chaga de Cristo", escreve Vasari, e completa: "nessa obra empenhou-se muito; ela foi terminada em sua velhice (...) quis demonstrar tudo o que valia e sabia". Vasari também informa que Uccello "mandou fazer um tapume de madeira para que ninguém pudesse ver sua obra antes de terminada". Donatello, o conhecido escultor, amigo e vizinho de Uccello, "indo certa manhã ao Mercado comprar frutas para desenhar, viu que Paolo descobria sua obra". Depois de "olhar bem a obra", escreve Vasari, Donatello exprime seu descontentamento - Uccello se envergonha e deixa a obra de lado (Vidas dos artistas, tradução de Ivone Bennedetti, WMF Martins Fontes, 2011, p. 197).
3) A chave do desvio que ocorre entre Vasari e Schwob está na frase "ela foi terminada em sua velhice" e na presença de Donatello. Em Schwob, Uccello chama Donatello depois de terminar o quadro, certo de "que havia realizado o milagre". "Mas Donatello", escreve Schwob, "vira apenas um emaranhado de linhas" (Vidas imaginárias, tradução de Duda Machado, Ed. 34, 1997, p. 100). Donatello morreu em 1466, Uccello em 1475 (nascido em 1397, não chegou aos "oitenta anos" declarados por Schwob em seu conto); o escultor, portanto, não poderia ter visto a obra finalizada, o "São Tomé buscando a chaga de Cristo". Assim como as cenas da vida de São Francisco, também essa obra de Uccello não sobreviveu (o motivo de São Tomé e das chagas de Cristo seria explorado por Caravaggio mais de um século depois, em 1601).    

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Paolo Uccello

Paolo Uccello, A Natividade, detalhe, Igreja de San Martino Maggiore, Bolonha
Giorgio Vasari sustenta que Paolo Uccello se preocupava muito mais com a perspectiva do que com as figuras, e é precisamente por conta dessa preferência que "viveu tão pobre quanto famoso". Mas isso não impede que o mesmo Vasari afirme que Uccello era insuperável na representação dos animais - Vasari não explica a origem do nome, uccello, pássaro, mas Marcel Schwob, em suas Vidas imaginárias, afirma que o nome vinha do grande número de animais pintados em todas as paredes de sua casa em Florença. Vasari informa que Uccello pintou algumas cenas da vida de São Francisco (afrescos na igreja de Santa Trinità, em Florença, que já não existem mais), "belíssimas cenas de cavalos e outros animais" na casa dos Medici, com "a soberba dos leões enfurecidos", a "velocidade e o temor em cervos e gamos", "os pássaros e os peixes com escamas variegadas", fez o Dilúvio e a Arca de Noé, pintou um cavalo imenso em homenagem a um general inglês, em Santa Maria del Fiore, uma pintura que enganou os olhos de muitos florentinos e também de muitos estrangeiros que por ali passavam, acreditando se tratar de uma escultura (Giorgio Vasari, Vidas dos artistas, tradução de Ivone Castilho Bennedetti, WMF Martins Fontes, 2011, p. 194-198).
*
Um desses estrangeiros passou pela cidade de Bolonha atrás dos rastros deixados por Paolo Uccello nessa cidade, uma passagem breve que aconteceu por volta de 1435. Como aconteceu com os afrescos das cenas da vida de São Francisco, o tempo foi cruel com os rastros de Uccello em Bolonha, mas não tanto: sobrou um pedaço daquele ciclo sobre A Natividade, num cantinho da igreja de San Martino Maggiore. E foram justamente os animais que sobreviveram, esses animais que não só eram de grande importância para Paolo como lhe deram o nome pelo qual é conhecido ainda hoje, Paolo Uccello, os animais que guardam o sono do bebê, que sobreviveram e que servem ao estrangeiro como uma espécie de portal, de limiar, não exatamente em direção ao passado, mas em direção a um tempo em suspensão.

sábado, 2 de novembro de 2013

Nota sobre os jornais

1) A utilização dos jornais na literatura: Pereira, em Afirma Pereira, de Antonio Tabucchi, personagem cuja própria trajetória de conscientização e emancipação política vai em paralelo ao seu uso cada vez mais anárquico das possibilidades de sua atividade jornalística (primeiro com a tradução de autores franceses, depois, antes de desaparecer e abandonar sua identidade, a derradeira peça de sabotagem que deixa no prelo).
2) Em paralelo, na mesma época histórica e com materiais semelhantes, O ano da morte de Ricardo Reis, de Saramago, em que Ricardo Reis vai pouco a pouco retornando ao mundo português e ao mundo europeu (estava no exílio carioca...) a partir das notícias do jornal - notícias que acompanha um pouco no piloto automático, pela força do hábito, uma força do hábito que Saramago de alguma forma consegue encaixar na própria dinâmica da narrativa, costurando milimetricamente o cotidiano, o histórico e o poético. Ricardo Reis como uma espécie de detetive involuntário que vai reunindo e montando as peças meio que à revelia de sua própria consciência, trajetória e desejo (muito como Pereira nesse sentido). 
3) A ideia do detetive involuntário faz iluminar imediatamente a analogia com Poe, com seu detetive Auguste Dupin, que jamais pisou numa cena do crime - resolvia todos os casos dentro de seu quarto, lendo as notícias dos jornais (não tanto aquilo que estava escrito, mas aquilo que faltava, aquilo que era eloquente em sua ausência - uma leitura das lacunas que é também o mote para o romance de Sabato, Sobre heróis e tumbas, baseado numa nota do La Razón de 28 de junho de 1955).  

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Tolstói e Shakespeare

1) George Steiner deu ao exercício da crítica uma feição quase agonística e quase trágica ao propor e investigar o seguinte dilema: Tolstói ou Dostoiévski, seu primeiro livro, publicado em fins da década de 1950. "A crítica literária deve brotar de uma dívida de amor", é a primeira frase do livro. Steiner defende a imperativa necessidade de marcar uma posição, confrontando duas obras e dois autores que, mesmo compartilhando aqui e ali alguns elementos, representam duas concepções de mundo e de literatura antagônicas - sem mediação, sem conciliação, sem caminho alternativo, o que Steiner postula, em Tolstói ou Dostoiévski, é a necessidade rigorosa de escolha, o tipo de postura radical que, segundo ele, fertiliza o exercício da crítica literária (algo que Susan Sontag vai explorar alguns anos depois com a ideia de "vontade radical").
2) Não parece ter passado pela cabeça de Tolstói sequer a possibilidade de se comparar a Dostoiévski. Sua dívida de amor, que era também uma dívida de ódio, de repulsa e de desespero, era com e contra Shakespeare. Harold Bloom afirma que a repulsa de Tolstói era fruto da consciência de um marco intransponível: Tolstói pressentia que era impossível ir além de Shakespeare, um pressentimento aliado a uma revolta um pouco irracional por conta do fato de Shakespeare ter chegado primeiro em termos históricos. Numa frase que parece não levar a lugar algum, Bloom escreve: "Shakespeare perturbava Tolstói porque o distanciamento deste, como autor, assemelha-se ao de Shakespeare e, nos momentos em que a arte suprema se afirma, o moralismo exacerbado cessa" (Gênio, tradução de José Roberto O'Shea, Objetiva, 2003, p. 92).
3) George Orwell, por sua vez, em ensaio publicado em 1947 ("Lear, Tolstoi e o Bobo"), é bem mais preciso. Orwell lê com cuidado o texto de Tolstói, escrito no fim da vida, no qual afirma que aos setenta e cinco anos decidiu reler mais uma vez as obras completas de Shakespeare e, mais uma vez, sentiu raiva e repulsa. Por que Tolstói escolhe para sua análise justamente Rei Lear, se pergunta Orwell. Seu resumo da peça é tendencioso, parcial, recortando trechos e enfatizando outros para defender sua tese de que Shakespeare é uma moda estúpida que durou tempo demais. Mas, para Orwell, o que Tolstói não pode suportar é o fato de se identificar com Lear, se identificar com a figura nobre que renuncia a tudo e que, como recompensa por esse gesto magnânimo, espera o respeito e a admiração daqueles que o rodeiam - mas Lear espera e não recebe, e Tolstói não pode aceitar esse fim trágico, porque é um fim que não deseja a si próprio (Orwell fala da visão anarquista de Tolstói, mas que é sustentada por uma sensibilidade autoritária, uma sensibilidade que não consegue sentir interesse por qualquer coisa que não seja ela própria - Dentro da baleia, tradução de José Antonio Arantes, Companhia das Letras, 2005, p. 173-194).    

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O dia do Juízo, 3

Nuoro, Sardenha, cemitério
1) Ao resenhar o romance de Salvatore Satta, Julian Barnes fala dessa sensação de que o romance não estaria exatamente contando uma história, mas construindo um ambiente. Essa sensação faz realmente parte da artimanha romanesca de Satta, especialmente porque o que está em jogo em seu livro é a reconstituição ficcional de um espaço geográfico que é ao mesmo tempo histórico (a Sardenha do início do século XX, antes da I Guerra Mundial) e metafísico (uma terra assombrada pela presença dos mortos, pela solidão e pela aridez).
2) George Steiner fala do romance de Satta como "uma das obras-primas da solidão na literatura moderna" e, retomando até certo ponto essa oscilação entre o espaço histórico e o metafísico, afirma que "não existe outra maneira de visualizar por completo" a paisagem do romance "a não ser visitando Nuoro e sentindo sua estrutura óssea": Il giorno del giudizio "é um livro dos mortos e para os mortos. Para um sardo, para um nuorense [de Nuoro, a cidade de Satta], há apenas um lugar capaz de receber essa preciosidade: o cemitério" (mais sobre os cemitérios aqui). Mas Satta questiona constantemente a própria possibilidade de evocar os mortos ao longo do romance, interferindo com sua voz externa na ilusão homogênea da narração - se o espaço oscila entre o histórico e o metafísico, Satta faz com que essa oscilação se desdobre também em direção ao registro estilístico e formal.
3) "Tirando Walter Benjamin", escreve Steiner, "nenhum rememorador transmite com maior pungência do que Salvatore Satta o direito dos vencidos, dos ridículos e dos exteriormente insignificantes de ser lembrados com precisão". Os ritos dessa existência são tão antigos quanto Homero, escreve Steiner. O romance de Satta faz uso desse substrato arcaico de presenças anônimas que, paradoxalmente, abarrotam a história com suas ausências. Metade dessa sensação típica do romance de Satta está também em Robert Walser (no pudor da narração, na dúvida, na hesitação), e a outra metade, aquela dos vencidos e dos ridículos anônimos, está também em Joseph Roth, em Fuga sem fim, em todas aquelas figuras que Franz Tunda encontra, vislumbra e esquece nas profundezas do Leste Europeu.    

sábado, 26 de outubro de 2013

O dia do Juízo, 2

Nino Frank, 1904-1988
1) A edição francesa do romance de Satta, a edição lida por Chatwin, segundo sua carta para Sontag em 3 de abril de 1982, saiu pela Gallimard em 1981, com tradução de Nino Frank - Le jour du jugement -, que também traduziu do italiano ao francês autores como Cesare Pavese, Curzio Malaparte, Italo Calvino e, sobretudo, Juan Rodolfo Wilcock (Frank traduziu O caos em 1982 e O templo etrusco em 1985). Frank era escritor e crítico de cinema, sendo responsável, na década de 1940, pela criação do termo film noir - em um texto sobre o cinema norte-americano do período. 
2) Antes disso, Nino Frank - que nasceu em 1904 e morreu em 1988 - foi colaborador de Joyce em Paris: Joyce "eventualmente ia ao cinema com Nino Frank ou a ópera e operetas", escreve Richard Ellmann, e continua: "Nino Frank estava seguidamente com Joyce em 1937 porque Joyce propôs a ele traduzirem Anna Livia Plurabelle para o italiano. 'Temos que fazer o trabalho agora antes que seja tarde', disse ele. 'De momento há pelo menos uma pessoa, eu mesmo, que pode entender o que estou escrevendo. Não garanto porém que em dois ou três anos ainda serei capaz de fazer isso'. Frank protestou, tarde demais, que o gênio da língua italiana não se adequava aos trocadilhos, e que o capítulo não poderia ser traduzido. Os dois encontravam-se duas vezes por semana, por três meses. Toda a ênfase de Joyce estava novamente na sonoridade, ritmo e jogo verbal; para o sentido das coisas ele parecia indiferente e infiel, e Frank muitas vezes tinha de lembrá-lo disso. Com um descuido refinado, Joyce jogava no texto nomes de mais rios [Anna Livia é o personagem de Finnegans Wake que representa o rio]. Frank lhe falou de um soneto de Petrarca, "Non Tesin, Po, Varo, Adige e Tebro", que reunia muitos nomes de rios, e Joyce teve de vê-lo imediatamente. Uma vez refreando o arrebatamento do mestre, Frank protestou sobre uma frase que Joyce gostava, "con un fare da gradasso da Gran Sasso", porque sacrificava o ritmo original. Joyce apenas respondeu: 'Eu gosto do novo ritmo'" (James Joyce, tradução de Lya Luft, Globo, 1989, p. 861-862).  
3) Como unir todos os pontos? Nino Frank serve de mediação entre Bruce Chatwin e Salvatore Satta, entre o italiano e o francês, mas também entre a Adelphi e a Gallimard, entre a década de 1930 e a década de 1980, entre a escrita de Finnegans Wake e a leitura de Il giorno del giudizio, embaralhando tempos e geografias. E existe a semelhança de Frank com Wilcock, ambos tradutores de tantas línguas em tantas direções (do espanhol para o italiano, do alemão para o francês, do inglês para o espanhol, etc), e no ano em que Frank estava envolvido com Joyce em Paris, 1937, e traduzindo coisas para a Nouvelle Revue Française, Wilcock estava em Buenos Aires, circulando com Borges e Bioy Casares, traduzindo e escrevendo coisas para a Sur.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O dia do Juízo, 1

1) Uma vez que as cartas escritas por Sontag ainda não estão disponíveis, não tenho acesso à possível resposta dela a Chatwin a respeito do romance de Salvatore Satta, O dia do Juízo. Na carta de 3 de abril de 1982, Chatwin é bastante rápido em seu comentário sobre Satta, talvez soubesse que Sontag já o conhecia, talvez tenham conversado sobre o autor, etc. O fato é que Susan Sontag já havia lido o romance de Satta, numa ocasião que entrou para os anais das curiosas recusas editoriais (como a de Gide com Proust, a de Eliot com Orwell, etc). Roger Straus, da editora Farrar, Straus and Giroux, em algum ponto do início da década de 1980 (a edição italiana de Satta era de 1979, a de Eco, a primeira, era de 1980), dá dois livros para Sontag, buscando sua opinião: o romance de Satta e O nome da rosa, de Umberto Eco. "Compre os dois", responde Sontag, "os dois são bons". "Não posso, Susan", respondeu Roger, "o dinheiro só dá para um". Sontag escolheu O dia do Juízo.
2) A história está registrada num livro sobre a editora, Hothouse: The Art of Survival and the Survival of Art at America's Most Celebrated Publishing House, Farrar, Straus, and Giroux (Simon & Schuster, 2013), escrito por Boris Kachka. Kachka escreve que Sontag teria escolhido Satta "na esperança de que vendesse bem", porque, afinal de contas, "Eco tem passagens inteiras em latim" (p. 235). Não parece um critério ou justificativa típicos de Sontag. De qualquer forma, Roger Straus seguiu a indicação e comprou o romance de Satta, que, como sabemos, saiu só em 1987 - e aí a coisa fica enigmática, porque Chatwin, em 3 de abril de 1982, escreve a Sontag falando de sua vontade de ver o romance de Satta traduzido, mas é provável que nessa data a coisa já esteja resolvida na Farrar, Straus and Giroux, porque o livro de Eco sai em 1983, pela Harcourt Brace.
3) Kachka escreve que Roger Straus adora contar a história da recusa de Eco - que vendeu mais de cinquenta milhões de cópias ao redor do mundo com O nome da rosa, enquanto o romance de Satta, o escolhido de Sontag, o escolhido de Chatwin, o escolhido de Roger Straus, vendeu duas mil cópias nos Estados Unidos. Kachka cita uma resenha de Julian Barnes: "Satta often seems to be 'doing' subjects - beggars, the election - rather than advancing a narrative" (p. 236). Kachka escreve que Straus gosta de contar a história da recusa de Eco porque mostra a arbitrariedade do mundo editorial - mas a escolha de Sontag, afirma Kachka, não foi arbitrária. O romance de Satta é uma meditação "tchekhoviana" sobre a vida de uma família na Sardenha da virada do século, "uma escolha típica de Susan Sontag", ao contrário do livro de Eco, "a historical thriller and highbrow progenitor of The Da Vinci Code" (p. 235).    

terça-feira, 22 de outubro de 2013

O dia do Juízo

1) Em uma carta datada de 3 de abril de 1982, Bruce Chatwin escreve a Susan Sontag sobre sua vontade de ver uma tradução ao inglês do livro de Salvatore Satta, Il giorno del giudizio. "Nosso amigo Calasso manda lembranças", escreve Chatwin. Foi Roberto Calasso (assim como supostamente fez com Sándor Márai alguns anos depois) quem redescobriu o romance de Satta e arriscou uma nova edição pela Adelphi em 1979. Chatwin diz a Sontag que está vendo com Calasso a possibilidade da publicação em inglês (não há detalhes, não sabemos o que Calasso e Chatwin conversaram sobre Satta; o que há de certo é que Calasso não apresentou o livro a Chatwin, que já havia lido uma versão francesa anos antes).
2) Na mesma carta, 3 de abril de 1982, Chatwin escreve, sobre O dia do Juízo: "George Steiner pronounces it one of the truly great works of the century etc". Onde Steiner fala isso? Será que Chatwin conversou diretamente com Steiner? Pouco provável. Talvez Calasso tenha comentado com Chatwin sobre as impressões de Steiner e agora Chatwin repassa a Sontag. O texto célebre de Steiner sobre Salvatore Satta só foi publicado em 19 de outubro de 1987, na New Yorker, quando a tradução ao inglês de Il giorno del giudizio foi finalmente publicada. "A tradução de Patrick Creagh, The Day of Judgement, ao meu ouvido e ao meu espírito, não capta inteiramente o gênio da prosa de Satta - sua ferocidade ebúrnea, o fogo lento que arde dentro da pedra", escreve Steiner em sua resenha.
3) Uma típica frase de Steiner num típico ensaio de Steiner - esse apelo simultâneo à tradição e ao preparo pessoal, ao mesmo tempo uma esquiva e uma tomada de responsabilidade: "meu ouvido" e "meu espírito". E mais: esse lastro metafísico, "o gênio da prosa de Satta", e essa mescla de iluminação profana e fervor religioso, "o fogo lento que arde dentro da pedra". Mas esse é apenas o início do ensaio, a preparação do terreno, porque Steiner é minucioso e precisa justificar essa animosidade de seu espírito e de seu ouvido para com a tradução. Ele cita trechos do original italiano, tentando mostrar que toda experiência de leitura da obra-prima de Satta fora de seu idioma será sempre parcial: "A réplica do marido é uma das frases mais brutais da literatura - é, literalmente, uma sentença de morte: "Tu stai al mondo soltanto perchè c'è posto" ("Estás no mundo só porque há lugar"). A tradução de Creagh - "You're only in this world because there's room for you" - é mais ou menos exata, mas fica aquém. No italiano, há a conotação de um nicho obscuro, predestinado, onde as vidas insignificantes e prisioneiras são encaixadas sem escapatória. E é precisamente essa falta de escapatória que dá a tais vidas sua base contingente de extrema humilhação" (Tigres no espelho, tradução de Denise Bottmann, Globo, 2012, p. 117).

domingo, 20 de outubro de 2013

Desassossego

Afirma Pereira, o romance de Tabucchi, é somente o prelúdio da deambulação de Pereira, sua fuga, seu movimento - a vida é fuga sem fim, para dizê-lo com Joseph Roth. Esse breve mês de 1938 é a base sobre a qual se molda a fuga de Pereira, sua libertação, sua emancipação - do nome próprio, do pertencimento nacional (Pereira como o Judeu Errante?). Pereira é um brevíssimo elo de uma enorme cadeia - o "horror do lar" de Baudelaire (seus catorze endereços entre 1842 e 1858), l'horreur du domicile, essa fórmula encantatória que tanto fascinou Bruce Chatwin (lembremos da Anatomia da errância, livro póstumo de ensaios, mas sobretudo de O rastro dos cantos, que não foi o livro sempre adiado e nunca feito sobre o "nomadismo", mas é o livro sobre o "ímpeto migratório instintivo" do ser humano). Para Chatwin, anatomy of restlessness, errância e desassossego, claro, desassossego, para falar com Pessoa, com Bernardo Soares, com Ricardo Reis - que dois anos antes, 1936, chegava a Portugal depois de dezesseis anos de exílio brasileiro (e Pessoa: África do Sul, Inglaterra, Lisboa). E por que Pessoa não outrou-se como mulher, como Coetzee fez com Elizabeth Costello? Poderia ser a Marta de Pereira e Monteiro Rossi, ou a Asja Lacis de Benjamin, Brecht e Piscator - se Pessoa era o poetodrama Lacis foi a precursora do teatro revolucionário com crianças, além de ser uma errante por natureza: da Lituânia para a Rússia, Berlim, Nápoles e Capri (foi aí que conheceu Benjamin - Asja não sabia uma palavra de italiano e tentava comprar amêndoas, ele a ajudou, ofereceu ajuda para carregar os pacotes, se ofereceu para uma visita no dia seguinte, almoçaram spaghetti, etc).

domingo, 13 de outubro de 2013

Beberrões e narradores

1) A história que conta Joseph Roth em A lenda do santo beberrão carrega grandes chances de ser precisamente isso, uma lenda, um delírio, a alucinação de um beberrão - elementos mágicos e fantásticos abundam, visões religiosas, encontros e acasos inexplicáveis. Tudo dentro daquela estrutura ficcional irretocável típica de Roth, com os fatos, os dados, as imagens e as viradas narrativas nos lugares certos: "Numa noite de primavera de 1934", ele escreve no primeiro parágrafo, "um cavalheiro de idade madura descia os degraus de pedra que levam de uma das pontes do Sena para as suas margens. Ali, como quase todo mundo sabe, mas merece ser relembrado nesta ocasião, costumam dormir, ou melhor dizendo, acampar os sem-teto de Paris" (A lenda do santo beberrão, tradução de Mário Frungillo, Estação Liberdade, 2013, p. 9).
2) O delírio do beberrão se mescla a um local geográfico propício à proliferação dos delírios e das alucinações - as pontes do Sena e seus recantos obscuros, esses portais que levam ao mistério e à degradação, como mostrou Cortázar n'O jogo da amarelinha. Mas Joseph Roth é insistente ao longo de sua obra em demonstrar como o beberrão se aproxima do narrador, e como a substância entorpecente pode favorecer o acesso à narrativa - é como se a própria comunidade que se forma ao redor da bebida indicasse um espaço mágico de recepção da narrativa, como os poetas arcaicos ao redor da fogueira, como Homero antes da escrita. Está em Confissão de um assassino, o "romance russo" de Roth, de 1936, no qual toda a história é desencadeada a partir de um encontro em um bar, e vai ficando cada vez mais complexa e intrincada quanto maior é a quantidade de álcool no sangue do narrador. E o santo beberrão de Roth é uma espécie de xamã do entre-guerras, construindo sua mitologia enquanto a vive (ou enquanto repassa o vivido num breve delírio antes de morrer).
3) George Orwell, num texto de 1931, muito próximo das andanças não só de Roth mas de seu santo beberrão, um texto intitulado "O albergue", fala desse poderoso vínculo entre os sujeitos, a bebida e a narração - mesmo na ausência da bebida a substância entorpecente é evocada como facilitadora da narração, os beberrões evocam a bebida ausente e, ao fazê-lo, evocam também a narrativa que vem com ela, que é facilitada e por vezes até criada por ela: "Bill, o parasita, o de melhor compleição de nós todos, um mendigo hercúleo que cheirava a cerveja mesmo depois de doze horas de albergue, contou histórias de furtos, de canecas de cerveja que lhe foram pagas em botequins (...); o imbecil", ou seja, "Papai Velho", de 74 anos, "o imbecil balbuciou sobre um grã-fino imaginário que certa vez lhe dera 257 soberanos de ouro" (Como morrem os pobres, tradução de Pedro Maia Soares, Companhia das Letras, 2011, p. 51). Orwell não é generoso como Roth e coloca esse imaginário no meio do relato - algo que Roth, por sua vez, deixa pairando ao longo de toda narrativa de A lenda do santo beberrão, sem nunca esclarecer. 

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Nota sobre as figuras ficcionais

1) Na continuação de suas notas sobre literatura em um Diário - uma espécie de monólogo interior travestido de crítica literária, já que o interlocutor, Emilio Renzi, é ele mesmo, seu outro, seu alter-ego -, Ricardo Piglia (cujo nome completo é Ricardo Emilio Piglia Renzi, daí a graça da coisa) escreve que "algum dia seria preciso escrever um texto sobre Asja Lacis": "Não vejo que sentido pode ter, diz Renzi, escrever algo sobre Asja Lacis. Existem outras mulheres mais interessantes que podem servir de tema para uma narrativa. Por exemplo?, pergunto", isto é, é Piglia quem pergunta, "Por exemplo, responde ele, a filha de Madame Bovary. Alguém deveria escrever uma biografia da filha de Madame Bovary. Na última página do livro começa outro romance, diz Renzi, e se levanta para ir buscar o livro de Flaubert".
2) Pois bem, Renzi volta com o romance de Flaubert, lê as últimas linhas, mostrando o destino da órfã que foi morar com uma tia: "A vida de uma operária têxtil que é a filha de Madame Bovary, diz Renzi, esse tema me interessa mais do que a história da amante de Walter Benjamin" (ou a história do filho de Stálin, acrescento eu). O desejo de se ocupar de um texto e de suas potencialidades ao ponto de reescrevê-lo, retomando partes lacunares, postergando seu fim (e profanando a própria poética do autor no processo, como seria o caso de um romance marxista sobre a filha de Madame Bovary). Tal desejo está em Balzac, quando escreve seu Malmoth como continuação daquele de Charles Maturin.  
3) É natural que Emilio Renzi, sendo a figura ficcional que é, prefira a história da filha de Madame Bovary à história de Asja Lacis, "figura real" (essa escolhida por Piglia, também figura real, o Fernando Pessoa desse heterônimo que é Renzi). O dilema está ativo também na obra de Coetzee: ele, como figura real, pode interferir na vida de outro autor-figura-real, que é Daniel Defoe, e dessa forma publica Foe, em 1986, uma espécie de versão alternativa para o contexto de criação de Robinson Crusoe. Mas para lidar com uma figura ficcional, para lidar com Molly Bloom, do Ulisses de Joyce, Coetzee precisa de uma mediação, precisa de Elizabeth Costello, figura ficcional como Molly - e é Costello quem publica, em 1969, The House on Eccles Street, a reescrita de Ulisses pelo ponto de vista de Molly. 

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Nota sobre Asja Lacis

1) Em suas notas sobre literatura em um Diário, provavelmente o Diário que vem escrevendo há anos e de onde retirou fragmentos para a realização de seu último romance, El camino de Ida, Ricardo Piglia fala de Asja Lacis: "em 1923, em Berlim, Brecht conhece a diretora teatral soviética Asja Lacis, e é ela que o põe em contato com as teorias e experiências da vanguarda soviética". Como faz também no caso da "filiação tio-sobrinho", Piglia dá a Tiniánov os créditos de teorias que são de Chklóvski (é como se Piglia escolhesse representar o formalismo russo metonimicamente a partir de Tiniánov): "Brecht 'retém' o melhor da teoria literária soviética dos anos 20, em especial Tiniánov, Tretiakov, Brik, e é o único que lhe dá seguimento nos anos duros da década de 30 (...). Os escritos sobre literatura de Brecht devem ser lidos no âmbito da teoria literária inaugurada por Tiniánov e desenvolvida por Bakhtin, Mukaróvski e Walter Benjamin".
2) As coisas aconteceram a partir da intervenção de Asja Lacis: "por intermédio de Asja Lacis, Brecht conhece a teoria da ostranenie elaborada pelos formalistas russos e por ele traduzida como efeito de estranhamento (...). É notável o deslocamento operado por Brecht para mostrar a origem russa de sua teoria do distanciamento. Afirma que sua descoberta se dá em 1926, graças a Asja Lacis". Asja é importante para Brecht também atuando no palco: faz parte do elenco de sua montagem do Eduardo II, de Marlowe, e seu alemão com sotaque russo é um bem-vindo reforço à tática brechtiana do "desnudamento dos procedimentos", como escreve Piglia: "nessa inflexão russa que persiste na língua alemã está, deslocada como num sonho, a história da relação entre a ostranenie e o efeito de estranhamento". Lacis, portanto, fez muito mais do que apenas apresentar Brecht e Benjamin.
3) "Pode-se ainda apreciar a altiva e belíssima figura de Asja Lacis eternizada numa sequência de A ópera dos três vinténs, filmada por Pabst em 1931", escreve Piglia ao final de sua nota (Formas breves, tradução de José Marcos Mariani de Macedo, Cia das Letras, 2004, p. 76-77). Seria belo poder ver Asja em movimento, mas tudo indica que não passa de mais uma atribuição errônea de Piglia (como aquela do cortejo de Roberto Arlt). Mas serve sem dúvida para lembrar a aparição de Juan Rodolfo Wilcock em Il Vangelo secondo Matteo de Pasolini, em 1964 (Wilcock inclusive traduziu as obras completas de Marlowe para o italiano), ou a intensa participação de Nabokov no mundo do cinema em Berlim na década de 1920, por pouco não esbarrando em Asja e Brecht, trabalhando como extra e colaborando com Ivan Lukash na escrita de roteiros ("seguia para os subúrbios a fim de trabalhar como extra nos filmes que eram rodados na tenda de um parque de diversões, onde a luz jorrava com um silvo místico dos enormes projetores apontados como canhões sobre uma multidão de figurantes, reduzindo-os a uma lividez cadavérica", Machenka, tradução de Jorio Dauster, Cia das Letras, 1995, p. 23).   

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Nota sobre as mulheres fatais

1) "Ouça, Monteiro Rossi, disse Pereira, amanhã eu mesmo telefono para a Marta, mas de um telefone público, por hoje é melhor que fique sossegado e vá para cama, escreva o número dela neste papel. Vou lhe dar dois números, disse Monteiro Rossi, se não estiver no primeiro, certamente estará no outro, se não for ela a atender, pergunte por Lise Delaunay, é assim que ela se chama agora" (Afirma Pereira, tradução de Roberta Barni, Cosac Naify, 2013, p. 135). Nem sinal de Marta ou de Lise Delaunay depois disso - ela desaparece ou é encontrada pela polícia, assim como Asja Lacis no mesmo ano, 1938. Asja era atriz, trabalhou com Brecht, Erwin Piscator e Ernst Toller (o amigo de Joseph Roth que com seu suicídio provocou o colapso do escritor), e provavelmente era versada na arte dos disfarces, como Marta - segundo Vila-Matas, na História abreviada, toda mulher fatal é uma câmera com a objetiva permanentemente aberta, captando as imagens do exterior e mimetizando-as.
2) Assim como Pereira e Monteiro Rossi, Aby Warburg também teve sua cota de mulheres fatais - e aquela que coube a Warburg chamava-se Rosa Luxemburgo. Philippe-Alain Michaud, em seu livro Aby Warburg et l’image en mouvement, transcreve algumas das observações do médico Binswanger quando da internação de Warburg: "Em 18 de novembro de 1918, eu passei a temer muito por minha família", disse Warburg, afirma Binswanger, segundo Michaud, "então peguei minha pistola e desejei matar a mim e a minha família. Você sabe, é porque o bolchevismo estava chegando" (Philippe-Alain Michaud. Aby Warburg and the image in motion. Tradução para o inglês de Sophie Hawkes, Nova York: Zone Books, 2007, p. 173).
3) No caso de Warburg, o "bolchevismo" era a Liga Espartaquista (Spartakusbund), uma espécie de proto-Partido Comunista Alemão organizado durante a Primeira Guerra Mundial, aproveitando não apenas o sucesso de Lênin na Rússia mas, principalmente, os insucessos alemães durante a guerra. A Spartakusbund foi fundada, entre outros, por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, que foram assassinados em 1919, quando a Liga, já associada ao Partido Comunista oficial, entrou em confronto com forças de defesa da recém-fundada República de Weimar. Em nota (p. 365), Michaud conta que Warburg chegou a receber os espartaquistas em sua casa de Hamburgo, nesse dia 18 de novembro de 1918, oferecendo-lhes um drinque, Rosa Luxemburgo entre eles - rigorosamente vinte anos antes de Marta e Asja Lacis desaparecerem (também Toller, o amigo de Joseph Roth e uma espécie de padrinho de Asja, era um espartaquista).  

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Pereira e os subversivos

1) No trato com Afirma Pereira, de Tabucchi, é preciso ter em mente a dimensão do contato de Pereira com o catolicismo, que termina por moldar, até certo ponto, suas próprias escolhas intelectuais - ele contrata o jovem Monteiro Rossi para escrever necrológios de escritores católicos ainda vivos, como homenagens e celebrações desses escritores. Existe um alinhamento evidente de Pereira com certo conservadorismo católico, que é também um dos eixos do salazarismo, junto com a própria ideia de Cultura e Educação (Salazar era professor, o Professor, catedrático da Universidade de Coimbra, assim como um de seus apoiadores principais, o Cardeal Cerejeira - e aí está tudo posto e misturado, Igreja, Educação e Política). Esse alinhamento também pode ser considerado a partir da perspectiva do judaísmo histórico de Pereira, que Tabucchi avança já na nota introdutória - o que talvez explique também as reticências de Pereira e sua predisposição para o confronto e seu abandono de sua identidade portuguesa no fim do livro.
2) Quando Pereira pede um texto de celebração de algum escritor católico, Monteiro Rossi responde ou com um artigo de elogio a algum escritor revolucionário, ou com um artigo raivoso sobre algum escritor alinhado aos fascismos da época - especialmente o italiano. É possível observar uma espécie de escala da subversão operando no romance: em primeiro lugar, Pereira, banal, alienado, alheio; em segundo lugar, Monteiro Rossi, jovem misterioso, passado obscuro, ideias desconfortáveis; em terceiro e último lugar, finalmente, Marta, a namorada de Monteiro Rossi, a verdadeira Mente Subversiva por trás dos artigos raivosos e dos elogios a Garcia Lorca e Maiakóvski. Se Monteiro Rossi aparece pouco, Marta aparece ainda menos - uma sombra que percorre os desvãos da cidade, conspiradora de uma sociedade secreta revolucionária, como em Los siete locos de Roberto Arlt (publicado em 1929).
3) Marta (Mata Hari?) é uma espécie de mulher fatal, como aquelas que povoam a História abreviada da literatura portátil de Vila-Matas: "Às oito e trinta e cinco, afirma Pereira, entrou no Café Orquídea. O único motivo pelo qual reconheceu Marta naquela moça magra, de cabelo curto e loiro, que estava perto do ventilador, foi ela estar com o mesmo vestido de sempre, de outro modo não a teria reconhecido de jeito nenhum. Marta parecia transformada, aquele cabelo curto e loiro, de franjinha e atrás das orelhas, dava-lhe um ar traquinas e estrangeiro, francês quem sabe. E ademais devia ter emagrecido pelo menos uns dez quilos" (Afirma Pereira, tradução de Roberta Barni, Cosac Naify, p. 101). Marta tem algo de Lady Griffith, a sibilina personagem de Gide em Os moedeiros falsos (francês, católico), ou melhor: Marta tem algo da irrequieta e subversiva Asja Lacis, que justamente nesse mesmo ano de 1938, talvez entre o encontro de Marta com Pereira e a morte de Monteiro Rossi nas mãos da polícia de Salazar, nesse mesmo ano de 1938 Asja é presa pela KGB e enviada ao Cazaquistão, onde ficará presa por dez anos.   

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Profetas bêbados

1) Da mesma forma que Ricardo Reis, na ficção de Saramago, reflete em seu corpo a decadência de Portugal - ele morre porque morre Portugal tal como lhe era familiar -, também em Afirma Pereira o corpo do protagonista espelha essa dissolução externa. Nada mais típico da época, essa progressiva consciência de que o mal de fora apodrece também a subjetividade (está em Freud, está em Benjamin). O coração de Pereira não vai bem, ele não consegue subir a ladeira que leva a sua casa, tem que pedir ao táxi que o leve (e deve pagar uma gorjeta extra para que isso aconteça). "Alô, doutor, disse Pereira, aqui é Pereira. Então, como vai?, perguntou o doutor Costa. Estou ofegante, respondeu Pereira, não consigo subir as escadas e acho que engordei uns quilos, e é só dar um passeio que meu coração fica aos sobressaltos" (p. 68).
2) Joseph Roth foi quem melhor personificou esse espelhamento somático da situação política europeia na década de 1930, condensando de forma incisiva algo que é só sugerido em Tabucchi e Saramago. Ilse Lazaroms fala dessa feição "profética" da obra e da figura de Roth, sua capacidade de captar com antecedência as repercussões do contexto histórico traumático - algo que, no caso de Roth, cobrou seu preço, transformando-o numa "profeta bêbado", já que "a queda da Europa em direção a outra guerra seguiu em paralelo ao próprio declínio de Roth em direção ao alcoolismo" (The Grace of Misery. Joseph Roth and the Politics of Exile, Leiden: Brill, 2013, p. xiv). Destino bastante semelhante ao de Fernando Pessoa, por sinal (alguns dizem que Pessoa morreu por conta de uma pancreatite aguda, causa de morte semelhante à de Roberto Bolaño).
3) E com relação a Pereira é preciso levar em consideração o aviso de Tabucchi na nota introdutória ao romance, frisando o passado judaico do nome Pereira - algo que se torna bastante sintomático quando a aventura de Pereira é posta ao lado das histórias de Benjamin ou Roth, por exemplo; e também quando se relembra que o destino de Pereira, no fim do romance, quando ele abandona seu nome e seu país, é justamente a França (ou pense em Gombrowicz chegando a Buenos Aires em 1939). Consta que Joseph Roth morreu em 27 de maio de 1939, depois de ter um colapso, em 23 de maio de 1939, ao receber a notícia do suicídio de Ernst Toller, dramaturgo, seu amigo, enforcado em um hotel de Nova York.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Pereira e a versão oficial

1) Pereira trabalha num jornal, o jornal Lisboa, cuidando da página cultural, depois de trinta anos trabalhando como repórter policial de um grande jornal, que não é nomeado. Há no romance esse permanente contato com o jornalístico, com a rotina da notícia, da pauta, da versão oficial - o diretor do jornal não poderia estar mais alinhado ao regime de Salazar e, ironicamente, o único meio do jornalista Pereira obter qualquer informação crítica sobre Portugal é a partir do garçom do Café Orquídea, que escuta, clandestinamente, estações de rádios estrangeiras.
2) Nesse e em alguns outros pontos, Afirma Pereira, de Tabucchi, pode ser aproximado de O ano da morte de Ricardo Reis, romance que Saramago publica em 1984 (que Tabucchi iria reescrever dez anos depois com Os três últimos dias de Fernando Pessoa, de 1994, mesmo com toda a má-vontade do português com o italiano, que de qualquer forma não servia de nada a esse último). Se é possível aproximar a desaparição de Reis e Pereira a partir da perspectiva política (suas "mortes" são respostas ao mergulho de Portugal no fascismo), fugindo da aproximação fácil entre Saramago e Tabucchi a partir somente de Pessoa, é possível também aproximá-los no contato com a rotina jornalística: no romance de Saramago, Salazar aparece nas ridículas palavras de exaltação dos jornais que Ricardo Reis lê no Hotel Bragança, quando faz hora para o jantar ou quando toma o pequeno almoço em seu quarto. Reis vai aos poucos se dando conta que o Portugal que encontra - depois de dezesseis anos de exílio brasileiro - é um Portugal esvaziado, feito da ridícula "versão oficial" (é o fantasma de Pessoa quem lhe dá a melhor definição: se veio para dormir, a terra é boa para isso (O ano da morte de Ricardo Reis, Companhia das Letras, 1988, p. 94), e mais:
Duas horas deram, duas e meia, lidos foram e tornados a ler estes dessangrados jornais de Lisboa, desde as notícias da primeira página, Eduardo VIII será o novo rei de Inglaterra, o ministro do Interior foi felicitado pelo historiador Costa Brochado, os lobos descem aos povoados, a ideia do Anschluss, que é, para quem não saiba, a ligação da Alemanha à Áustria, foi repudiada pela Frente Patriótica Austríaca, até aos anúncios, Pargil é o melhor elixir para a boca, amanhã estreia-se no Arcádia a famosa bailarina Marujita Fontan, veja os novos modelos de automóveis Studebaker, o President, o Dictator, se o anúncio do Freire Gravador era o universo, este é o resumo perfeito do mundo nos dias que vivemos, um automóvel chamado Ditador, claro sinal dos tempos e dos gostos. (p. 123-124 - lembrando que também Ensaio sobre a lucidez Saramago faz uso da imprensa, de forma bastante semelhante àquela de Afirma Pereira, em que o texto veiculado é uma "mensagem engarrafada" destinada a poucos).
3) Essa rotina jornalística era típica da época - basta lembrar, por exemplo, a publicação seriada de Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin, em 1929, no Frankfurter Zeitung, jornal que abrigou tantos outros escritores, como Márai, Benjamin e Joseph Roth (e como a obra desses três é marcada por essa serialização, esse sentimento do imediato que vem da contribuição quase diária com os jornais da época). Há também essa curiosa e persistente proximidade entre o título dos periódicos e suas localizações geográficas, o que não deixa de ser irônico diante da intensa "desterritorialização" empreendida pelos autores citados, seja em obra, seja em vida - como está posto na pergunta que Pereira faz ao diretor do jornal Lisboa: "que raça podemos celebrar nós, os portugueses?".