terça-feira, 31 de julho de 2012

Lendo Joseph Roth

Enquanto Walter Benjamin visitava o sul da França na companhia de Jula Cohn, o escritor Joseph Roth encontrava, em Paris, o primeiro-tenente do extinto Exército Austríaco Franz Tunda. Era dia 27 de agosto de 1926, escreve Roth, às quatro da tarde. O mundo é hostil com Tunda - e o mundo também não diminui seu ritmo para que intelectuais como Roth e Benjamin possam ler seus livros em paz: as lojas estavam cheias, continua Roth, as mulheres acotovelavam-se nas grandes lojas, nas confeitarias tagarelavam os que nada tinham a fazer, nas fábricas zuniam as rodas, à margem do Sena os mendigos catavam piolhos (Fuga sem fim, tradução de Luiza Ribeiro, Difel, 1985, p. 119). Alguns dizem que há nostalgia na obra de Joseph Roth. Alguns dizem que há ansiedade na obra de Joseph Roth. Alguns dizem que Roth, em seus anos em Viena e, logo depois, em seus anos em Paris, havia adquirido modos de dândi: beijava mãos, usava bengala e monóculo. Mas em seu encontro com Franz Tunda, em plena tarde de agosto, só se vê o vazio, um amplo monstro de vácuo que suga tudo. Não tinha profissão, nem amor, nem desejo, nem esperança, nem ambição e, de modo algum, egoísmo, escreve Roth ao lembrar de Tunda. Ninguém no mundo era tão supérfluo quanto ele.   

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Lendo Sterne

Em 1926, Walter Benjamin é convidado a escrever um verbete sobre Goethe para a nova Enciclopédia Soviética. Em julho desse ano, o pai de Benjamin morre. Dois meses depois, ele viaja ao sul da França, na companhia de Jula Cohn, uma escultora berlinense, irmã de Alfred Cohn, amigo íntimo e ex-colega de escola de Benjamin. Durante a viagem que fizeram juntos, Jula esculpiu um busto de Walter - obra que, infelizmente, se perdeu durante a II Guerra. Foi a Jula que Walter dedicou seu ensaio sobre o romance As afinidades eletivas, de Goethe (um ensaio escrito antes da viagem ao sul da França e antes do verbete soviético). Foi na viagem com Jula ao sul da França que Walter leu, pela primeira vez, talvez entre uma sessão e outra de exposição para a confecção do busto, o Tristram Shandy de Laurence Sterne. A leitura, no entanto, não gerou qualquer comentário por parte de Benjamin - normalmente tão produtivo no que diz respeito a notas de leitura e fragmentos em geral.

sábado, 28 de julho de 2012

As coletas, os subterrâneos

Para começar, um trecho de Andrei Makine - o escritor volta a sua Rússia natal, depois de anos distante, vivendo na França, escrevendo em francês (escrevendo em francês sobre a Rússia). Ele escreve:
Os únicos lugares onde tive a impressão de um verdadeiro retorno foram as galerias do metrô e as passagens subterrâneas transformadas em bazar de miséria. Os velhos colocavam à venda objetos que gritavam terem sido arrancados de um apartamento, de um quarto onde sua ausência criara um vazio impossível de preencher. Não era a alegre miscelânea de uma feira de antiguidades, mas os vestígios de existências destruídas pelos novos tempos. Eu reconhecia a louça usada de uma xícara, a forma dos saltos de um par de sapatos, a marca de um rádio transistor... Destroços que tinham a idade da minha infância. Toda uma época resumida nas velhas mãos azuladas pelo frio. 

Andrei Makine. A terra e o céu de Jacques Dorme
Tradução de Celso Mauro Paciornik. 
Cosac Naify, 2010, p. 17.
1) Para cada geografia, uma relação com os objetos. Os vestígios materiais das vidas, com a variação dos espaços, contam histórias variadas. Na perspectiva do Paul Auster de Sunset Park, por exemplo, os objetos encontrados nas casas abandonadas são testemunhas de uma postura vazia, inconsequente e infantil diante da vida, do consumo e das relações humanas - uma abundância esquizofrênica, uma acumulação desnorteada, absurda. 
2) Em Makine, os objetos parecem mudos, esgotados - testemunham a miséria justamente porque deles não se pode extrair mais nada, apenas o vazio (a paradoxal natureza oca do totalitarismo). Em Sebald, ao contrário, talvez por uma leitura mais insistente de Walter Benjamin, há sempre mais uma volta no parafuso - a barbárie se espelha na civilização e vice-versa. Em Sebald, ainda que enigmáticos, os objetos são também eloquentes - como os relógios antigos em Austerlitz, que motivam uma das reflexões mais produtivas de Jacques: O tempo, disse Austerlitz no observatório astronômico de Greenwich, era de todas as nossas invenções de longe a mais artificial (p. 102).
3) Para cada geografia, um uso dos objetos. Para Joseph Cornell, que viajava pelo mundo sem sair de Nova York, a eloquencia dos objetos só era acionada no contato entre eles. Dentro de suas caixas, Cornell contava histórias a partir da justaposição de artefatos estranhos entre si - ao contrário do colecionador do século XIX, aquele que Benjamin tem em mente durante a elaboração das Passagens, que acumula seguindo uma lógica prévia. Os objetos de Cornell, incompletos, anacrônicos e aleatórios, contam também a história da implosão dessa lógica.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Napoleão e o romance

Napoleão é a imagem perfeita do alcance da ficção na dita vida real, uma imagem da mescla mais delirante entre realidade e fantasia. Napoleão é um enigma que permanece, justamente porque sua vida e tudo aquilo que fez formam uma espécie de nó na garganta da verossimilhança. Não há campo do conhecimento que não tenha sido tocado por sua megalomania - da engenharia à biblioteconomia. O que dizer da literatura:
Assim como o surgimento do Quixote e de Robinson no campo da literatura ocidental está em relação direta com uma situação histórica definida - para o primeiro, as aberrações sociais e espirituais causadas por uma ordem teocrática retrógrada; para o segundo, a revolução burguesa de Cromwell e as perspectivas por ela abertas ao sonho individual -, também a trajetória do Bastardo no século da História do romance é propriamente inconcebível sem a escalada de Napoleão. O aventureiro sem nascimento nem fortuna, que, num piscar de olhos, coroa-se a si próprio, instala seus irmãos em todos os tronos da Europa por ele desapropriados e forja-se um império em uma recentíssima república de que é incipiente cidadão, pertence ao romance por todas as fibras de sua personalidade: Napoleão é romance de ponta a ponta, um romance que se faz à medida que influencia os acontecimentos da história. É o Bastardo encarnado, o renegado perfeito que deixa o mundo em polvorosa ao realizar sem escrúpulos nem remorsos o que seus semelhantes mal ousam sonhar. Torna-se então, para o Bastardo contemporâneo, o inspirador, o mestre, o ídolo que não esmaga, mas soergue seus fiéis; e, para o romance moderno, o gênio libertador cuja ação mesma, no limiar entre a ação e o sonho, recua como nunca antes os limites da imaginação.
Marthe Robert. Romance das origens, origens do romance. Tradução de André Telles. Cosac Naify, 2007, p. 179.  
Napoleão é a mão que derruba a primeira peça de uma infinita fila de peças de dominó. Balzac, Stendhal, Hitler e Elias Canetti. Roberto Bolaño, Stanley Kubrick, Thomas Mann e Freud. Toda uma linhagem do pensamento moderno que nasce diretamente de Napoleão e de sua inextricável cópula entre ficção e história.

terça-feira, 17 de julho de 2012

O esconderijo

Um jovem foge de Moscou, em fins da década de 1930. Ele é um pianista, um "intelectual de merda", como escutou algumas vezes nas ruas, nas escadas de seu prédio. Seus pais foram presos. Escondido do outro lado da rua, ele nota que algo está errado em sua casa. Foge com a roupa do corpo para o interior da Ucrânia, para a casa de um tio que não conhece: 
Aleksei aprendeu rapidamente a moldar o corpo, os movimentos, ao vão exíguo. Foi capaz de parar no meio de um gesto sua vida secreta quando um dia, além das tábuas, ecoou esta voz, que dizia rudemente ao tio: "Seu sobrinho não está longe, as pessoas o viram. É bom você nos ajudar, antes que nós mesmos o encontremos no seu celeiro...". O tio, calmíssimo, respondia com uma voz sem timbre: "Nunca vi esse sobrinho em toda a minha vida. Se vocês o encontrarem, vou ter a oportunidade de conhecê-lo...". Aleksei ficou petrificado, a colher parada a caminho da boca, não ousando nem mesmo espantar uma mosca da testa.
Saía do refúgio no meio da noite, lavava-se, mudava de roupa, desenferrujava as pernas. A tranquilidade dos campos, o céu, as estrelas embaçadas de calor, tudo o convidava à confiança, à alegria da vida. Tudo mentia. 
Andrei Makine. A música de uma vida. Tradução de Eduardo Brandão. Companhia das Letras, 2006, p. 45.
1) Dentro do universo totalitário, a ideia do esconderijo ocupa uma posição de destaque - é o espaço de resistência por excelência e, simultaneamente, a imagem mais bem-acabada do medo, da fuga, da impossibilidade de seguir adiante. O esconderijo é um esforço tremendo em direção à vida, à sobrevivência. O esconderijo é também o clímax da tensão diante do poder totalitário - o espaço para a esperança é ínfimo, assim como o espaço para o futuro. 
2) O esconderijo só faz sentido se pensado como uma contrapartida a algo de externo, de estranho, de alheio. Talvez esse seja o ponto mais produtivo na imagem construída por Makine: o homem sai do esconderijo, olha o céu e os campos, pensa em confiança e em alegria e conclui que é tudo mentira. A angústia maior de quem está no esconderijo parece ser a evidência de que tanto o mal quanto o bem chegam da mesma fonte - do lado de fora. Essa indecidibilidade torna a vida impossível - e o poder totalitário alcança seu paroxismo, a invasão completa de todos os sentidos, de todas as sensações. 
3) A única vida possível no esconderijo, portanto, é uma vida invisível, uma vida que emula a própria extinção, que torna verossímil seu próprio fim. É preciso um enorme comprometimento em direção a uma invisibilidade - é preciso adaptar o corpo, como faz Aleksei, ao desaparecimento. Adaptar a voz, os fluidos corporais, a sensibilidade dos olhos, o contato com o ar, a terra e, principalmente, os outros. Um intrincado sistema do viver-junto emerge no esconderijo - seja um esconderijo compartilhado ou um esconderijo solitário. Pois por mais solitário que seja o isolamento, ele se configura sempre como uma espera, como uma absurda e interminável espera.  

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Lukács e as abelhas

O velho Lukács tinha sua razão ao estranhar o jovem Lukács. Esse Lukács de vinte e nove anos, que está escrevendo a Teoria do romance, alcança com frequência um tom fortemente metafórico, por vezes quase delirante. Ele começa um parágrafo da seguinte forma:
A psicologia do heroi romanesco é o campo de ação do demoníaco.
Ainda não sabemos quem recebe essa influência demoníaca - se é o escritor, no momento de escritura do romance, se é o leitor comum, no momento em que se relaciona com o heroi, se é o crítico, diante da tarefa de destrinchar essa psicologia do heroi romancesco, ou se são todos esses, em camadas, e essa influência do demônio seria aquilo que chamamos de história da literatura. Lukács continua:
Os homens desejam meramente viver, e as estruturas, manter-se intactas; se os homens, por vezes acometidos pelo poder do demônio, não excedessem a si mesmos de modo infundado e injustificável e não revogassem todos os fundamentos psicológicos e sociológicos de sua existência, o distanciamento e a ausência do deus efetivo emprestaria primazia absoluta à indolência e à autossuficiência dessa vida que apodrece em siêncio.
O demoníaco é uma constante na história da literatura ocidental - desde as fundações bíblicas até Baudelaire, Dostoiévski, Herman Melville (Moby Dick é um tratado de metafísica, escreve Borges, a baleia sendo, simultaneamente, o mal absoluto e a redenção), Cormac McCarthy (segundo Harold Bloom, o Juiz Holden, de Blood Meridian, é uma figura do demoníaco). E Lukács, diante disso, encerra seu parágrafo:
Súbito descortina-se então o mundo abandonado por deus como falta de substância, como mistura irracional de densidade e permeabilidade: o que antes parecia o mais sólido esfarela como argila seca ao primeiro contato com quem está possuído pelo demônio, e uma transparência vazia por trás da qual se avistavam atraentes paisagens torna-se bruscamente uma parede de vidro, contra a qual o homem se mortifica em vão e insensatamente, qual abelhas contra uma vidraça, sem atinar que ali não há passagem.
Mistura irracional de densidade e permeabilidade?
A alma esfarelada como argila seca?
Não há dúvida de que o jovem Lukács procura se aproximar, a partir de seu próprio texto, da concatenação de suas ideias e de sua sintaxe violenta - a sintaxe do jovem é uma espécie de apneia -, do poder demoníaco que tenta descrever. Em sua denúncia da insensatez inerente à alma do heroi romanesco há qualquer coisa da sabedoria de Salomão - que sente pena do homem que toma paredes por "atraentes paisagens". E sua imagem das abelhas contra a vidraça - o homem que não atina que não há passagem - ecoa na frase de Baudrillard: A própria impostura e a intoxicação não fazem parte do virtual? Não sabemos. Sempre a velha história da mosca que se choca contra a evidência incompreensível do vidro.

Georg Lukács. A teoria do romance. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 92.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Heteronomia crítica

1) Georg Lukács, num prefácio muito tardio ao seu livro A teoria do romance, escreve que a obra "surgiu sob um estado de ânimo de permanente desespero". A teoria do romance foi escrito em 1914, e publicado em livro somente em 1920. Lukács chama a si próprio, nesse prefácio escrito muitas décadas depois da redação do livro, de "o autor da Teoria do romance" - marcando com clareza essa completa estranheza diante daquilo que se foi, mostrando que o resgate efetuado pela memória será sempre incompleto, provisório, e que parte daquele desespero experimentado no passado atravessa o tempo e se apresenta como a agonia renovada de não poder voltar atrás. Lukács escreve:
A teoria do romance permaneceu uma tentativa que fracassou tanto no projeto quanto na execução, mas que em suas intenções aproximou-se mais da saída correta do que seus contemporâneos foram capazes de fazer.
2) Nesse prefácio tardio, escrito em julho de 1962 em Budapeste (exatamente cinquenta anos atrás, portanto), Lukács realiza uma espécie de heteronomia crítica, à maneira de Fernando Pessoa e seu procedimento de outrar-se. O velho Lukács luta com o jovem Lukács durante o prefácio de 62 - e parte do velho Lukács luta consigo mesmo pelo tom a ser dado ao resgate do jovem Lukács, se elogioso ou queixoso. Se por um lado reclama de suas limitações metodológicas, por outro enaltece a visão avançada de seus equívocos. Se por um lado reclama de sua simplificação de Tolstói, por outro enaltece sua pioneira leitura de Kierkegaard.
Se hoje alguém lê A teoria do romance para conhecer a pré-história das ideologias relevantes nos anos vinte e trinta, pode tirar proveito. Mas se tomar o livro para orientar-se, o resultado só poderá ser uma desorientação ainda maior.
3) Um dos leitores mais insistentes de Lukács foi Edward Said - e essa leitura tomou a forma de um ensaio, presente na coletânea Reflexões sobre o exílio. Said fala que Lukács articula sempre "três dimensões do tempo", das quais ele, Lukács, "foi o filósofo e o poeta, o técnico de seu páthos". A primeira dimensão dá conta de "uma irrecuperável e desejada unidade no passado". A segunda, "uma intolerável disjunção entre ideais e realidades no presente". E, por fim, "um futuro que a tudo conquistará e destruirá". Os resultados que Lukács encontra na junção dessas dimensões, finaliza Said, são: "perda, alienação e obliteração". 

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Borges, concisão

1) Borges, como sabemos, é econômico.
Escreve frases como "A distinção é válida", "Hamlet, nesse tempo, é são e é louco" ou "Naquelas cavernas é que entrei". É a faceta linguística de sua poética do lacunar. A escolha é uma só - somente uma palavra aparece -, mas Borges, por meio de algum sortilégio inexplicável, dá uma simultânea impressão de facilidade e inesgotável trabalho em cada frase que seleciona.
Sentimos que na Índia o homem pulula. Na aldeia, senti que o que pulula é a selva, que quase penetrava nas choças. (do conto Tigres azuis)
2) A literatura de Borges é uma vertiginosa aproximação de contrários.
Simula uma impessoalidade, um distanciamento, como se fosse um simples gesto de coleta de comentários bibliográficos - mas há sempre aquela presença maníaca por trás, o leitor infatigável, o bibliotecário, o copista, a testemunha solitária da história da literatura, e essa presença é sempre Borges. Dá a impressão de sempre perseguir os mesmos temas, simulando a concisão de quem não quer gastar muito tempo com eventos, conceitos e julgamentos que são conhecidos por todos - e esse jogo de comentar a história da literatura sempre de forma lacunar e oblíqua, como quem acrescenta uma breve observação antes da dissolução da audiência, gerou uma obra literária vasta e independente.
3) Pode-se imaginar a agonia de Borges ao pressentir sua Obra Completa.
Ao contrário do que pensava Lévi-Strauss - de que todas as versões fazem parte do mito -, Borges buscava sempre a síntese absoluta, a imagem ou o momento que pudessem transformar a percepção e, nesse momento de transformação, iluminar o que foi, o que é e o que ainda será. Uma frase que valha pelo universo inteiro. Uma palavra. A memória de Shakespeare - toda a memória de Shakespeare, que chega através de uma ligação telefônica - é resumida em uma frase:
Simply the thing I am shall make me live


domingo, 8 de julho de 2012

Medo e nostalgia

Cozarinsky, num fragmento de Vodu urbano que se chama Cheap Thrills, usa como epígrafe uma receita de Elias Canetti:
Fazer um inventário de tudo o que nos deixa nostálgicos... sem tentar explicar ou relacionar, sem conexões, apenas aquelas coisas que nos provocam nostalgia. No outro dia, fazer o inventário de tudo aquilo que nos dá medo.
Cozarinsky, no fragmento que se segue à citação, escolhe o inventário da nostalgia ou o inventário do medo? Não fica claro. Talvez seja uma mistura dos dois, uma mistura de medo e nostalgia. Ele narra algo bastante identificável: sua experiência com um cinema de Buenos Aires que não existe mais (nostalgia?). Há, contudo, algo mais, uma espécie de educação dos sentidos - aquilo que o muito jovem Cozarinsky observa acontecer nas últimas fileiras da sala de cinema (medo?):
Talvez não haja nenhum registro da primeira vez em que a mão de um velho alisou os joelhos de um soldado, mas na época em que comecei a frequentar o Armonia ele já acomodava um grande número de adolescentes que, com os olhos fixos nos peitos de Kim Novak, expeliam pelas braguilhas abertas um segmento de sua viscosa vida interior nos dedos de vizinhos especialistas.
Se esse trecho talvez anuncie uma excitação da descoberta (pela ênfase da descrição), o trecho final é bem mais sombrio - está bem mais ao lado do medo que da nostalgia. Narra a violação e o assassinato de um menino, dentro do banheiro do cinema:
O Armonia fechara as portas pouco tempo depois de um inquérito policial sobre a morte de um tal Ricardito Ordónez, de nove anos, violado e asfixiado em uma latrina por um operário de construção das províncias do norte, que, ganhando a confiança do menino com ofertas generosas de amendoins cobertos de chocolate, atraíra-o para o banheiro.

Após introduzir toda a extensão de seu desejo entre as nádegas rígidas e assustadas de Ricardito, sufocou seus lamentos desordenados com o braço direito tatuado, convertendo assim um gesto de paixão numa involuntária proeza de necrofilia.
A violência das memórias que Cozarinsky resgata nesse fragmento é análoga à violência que Canetti cultiva em seus escritos - seja pela via da nostalgia, seja pela via do medo, o olhar de Canetti está sempre pousado na crueldade, no que há de mais obscuro no comportamento humano. Uma crueldade e um tênue desespero diante das capacidades de autodestruição do homem - uma lição que Canetti e Cozarinsky retiraram, em grande medida, de Kafka. Certamente não é por acaso o fato dos dois escritores terem dedicado livros a Kafka - Canetti com O outro processo e Cozarinsky com um curioso projeto de montagem de textos alheios, denominado Galaxia Kafka.  

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Sobre algo que não é seu

Um fragmento de Vodu urbano, o livro de Cozarinsky. O título do fragmento é Glad Blues, e sua epígrafe vem de Barthes, do Barthes de Sade, Fourier e Loyola. A citação de Barthes é clássica e emblemática:
A verdade é que hoje já não há mais nenhum espaço linguístico fora da ideologia burguesa. Nossa língua provém dela, retorna a ela, nela se encerra. A única reação possível não é nem o desafio nem a destruição, mas, simplesmente, o roubo: fragmentar o antigo texto da cultura, da ciência, da literatura, e disseminar suas marcas em fórmulas irreconhecíveis, da mesma forma como que se falsifica uma mercadoria roubada.
1) Dentre todas as citações que formam Vodu urbano essa a que mais se destaca - posicionada no centro da narrativa, carrega de sentido não apenas o fragmento que precede, mas também tudo que veio antes e tudo que virá depois. Barthes oferece, sem preâmbulos, o nome do procedimento: roubo. E Cozarinsky rouba não apenas da "cultura", mas também de sua própria memória (em seus fragmentos autobiográficos chama a si mesmo sempre de "ele"), mostrando que as fronteiras entre os dois campos são sempre fabricadas, artificiais - pois a tradição é sempre alcançada através de uma memória, de um corpo (outra lição de Barthes).
2) Como já fez Alan Pauls com o desenhista Lino Palacio, Cozarinsky ataca a sua própria memória através das cenas inaugurais - em seu caso, as páginas da revista Billiken, o lugar em que "o antigo texto da cultura" pela primeira vez se manifestou. Os anúncios da revista serviam, para o menino que Cozarinsky cria em sua memória, como uma espécie de contraponto para o mundo exterior, um guia para a descoberta de sensações - como vemos também em Barthes, no Barthes de Mitologias
3) Os fragmentos de Vodu urbano, assim como as últimas novelas de Alan Pauls, procuram o resgate dessa sensação de que o mundo - o antigo texto da cultura - é uma criação privada (a criança que, assombrada, imagina que tudo ao seu redor é seu, fruto de sua imaginação). A volta do parafuso está na reconstrução artística desse momento - o escritor falsifica a própria memória, realizando um enxerto, uma anomalia. Essa anomalia é justamente a consciência de que o mundo, longe de ser uma criação recente, é um substrato arcaico sem fim nem começo - sobre o qual se age para "disseminar suas marcas em fórmulas irreconhecíveis".   

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Sobre algo que não é seu e passa a ser

Segundo Edgardo Cozarinsky, o grande momento da criação literária é aquele no qual se reflete sobre algo que não é seu e passa a ser - ou seja, o intrincado sistema de citações, epígrafes, empréstimos, roubos e contrabandos que forma, por exemplo, Vodu urbano. Cada fragmento ficcional (cada cartão-postal enviado de uma geografia desconhecida, sempre em movimento) é inaugurado a partir de um conjunto de citações, e esse fragmento responde a esse corpo estranho, a esse texto exterior, ecoando suas ideias, suas imagens. Cozarinsky, portanto, conta histórias que são atravessadas por essas citações - de forma indireta, oblíqua, como se a vida narrada fosse uma espécie de comentário, de glosa da história da literatura.