segunda-feira, 4 de junho de 2012

Uma repugnante perversidade

1) O escritor alemão Gert Ledig narra, em seu livro Vergeltung (represália, vingança, retaliação...), o bombardeio de uma cidade alemã durante a II Guerra Mundial. Ledig passa de um personagem ao outro, contando suas mortes sucessivas sob as bombas de fósforo: não há juízo moral, nenhuma identificação com as vítimas, que estão sempre distantes, sempre estranhas ao leitor. Os jovens nazistas que avançam durante o ataque, o aviador americano atingido no ar, os dois alemães soterrados nos escombros, próximos da morte - e Ledig impede a satisfação da empatia quando mostra o homem soterrado que, antes de morrer, estupra a adolescente que está enterrada com ele.
2) A narrativa de Ledig não oferece consolo ou qualquer preceito afirmativo sobre a guerra - é cruel em sua ausência deliberada de certeza. Somente a narração distante do horror, quase documental, quase neutra, quase alienígena. Seu tema não é político (a luta contra o nazismo), é humano - ou talvez pós-humano, pós-histórico em sua perspectiva alheia, cirúrgica, panorâmica e aleatória do sofrimento e das consequencias da guerra. Nesse sentido, a abordagem de Ledig é completamente distinta daquela de Ernst Jünger - cuja visão da guerra é profundamente calcada em sua vivência, em sua figura quase heroica, em seu autorretrato enquanto sobrevivente (com toda a carga possível para essa palavra, conforme mostrou Elias Canetti em Massa e poder). Ledig, que teve a mandíbula destroçada durante um combate na Frente Russa, escolheu não se aproveitar de nenhum dos avatares que o poderiam ter convertido em um escritor famoso.
3) O romance de Ledig recebeu críticas bastante duras na época de seu lançamento - e é essa miopia da crítica que serve de ponto de partida para a análise que Sebald oferece dos escritos de Ledig (o faz nas conferências de Zurique, Guerra aérea e literatura). A audiência daquele tempo não queria uma imagem da guerra isenta de valores, de sacrifício, de sentido, afirma Sebald - e esse vazio é o elemento que mais incomoda na ficção de Ledig. "Uma repugnante perversidade", escreveu um crítico. Por conta disso, o livro de Ledig é muito mais do que uma narração sobre a guerra - é uma cartografia do sofrimento, um mapeamento da capacidade humana de causar sofrimento e da falta de sentido deste. E, como sabemos desde Beckett, quando abandonamos o sentido abandonamos também a redenção.

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