domingo, 13 de maio de 2012

Ulisses chora

1) Em Sunset Park, o livro de Paul Auster, Miles Heller relembra o momento em que decidiu viajar e desaparecer da vida de todos que conhecia (especialmente seus pais) durante sete anos. Miles estava no lugar errado na hora errada: escutou, por engano, por acaso, uma conversa de seus pais - uma conversa cujo assunto principal era ele, Miles. De forma violenta e inesperada, Miles teve a oportunidade de contemplar a si próprio de uma perspectiva exterior - escondido, acompanhava aqueles que falavam sobre ele como se ele não estivesse ali, e Miles estranha o fato de que, em certo sentido, ele realmente não estava ali, e esse auto-estranhamento terminou por invadir toda sua existência e ele não encontrou outra alternativa que não fugir.   

A reação apropriada seria voltar para seu quarto e fechar a porta. Mesmo na hora em que estava parado no corredor escutando os pais, sabia que não tinha nenhum direito de estar ali, que devia se retirar, mas não conseguia impedir, estava curioso demais, ávido demais para descobrir o que estava acontecendo, e assim não se mexeu e, pela primeira vez na vida, escutou escondido uma conversa particular dos pais e, como a conversa em grande parte tratava dele, foi a primeira vez que ouviu os pais ou qualquer outra pessoa falar sobre ele pelas costas.
Ele é diferente, Willa estava dizendo. Há nele uma raiva e uma frieza que me assustam e eu o detesto pelo que fez com você.

Paul Auster. Sunset Park
Tradução Rubens Figueiredo. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 28-29.

2) Esse motivo foi utilizado também por Javier Marías - especialmente em Todas las almas, quando Marías fala do eavesdropping (com a importante diferença que o eavesdropping é uma escuta deliberada, porém não menos estranhada). Não há dúvida que o criador desse procedimento de estranhamento foi Homero. Na Odisseia, Ulisses está escondido na corte dos Feácios - de repente, por engano, por acaso, começa a escutar sua própria história. O poeta da corte, o aedo dos Feácios (que é cego como Tirésias, cego como Homero), começa a contar, em versos, a história de Ulisses. Escondido, o heroi experimenta um profundo estranhamento ao ouvir sua história como se não estivesse ali. Há uma espécie de fama póstuma na fala do aedo, como se Ulisses já estivesse morto - congelado na glória da eternidade. Como se Ulisses, no ato de escutar sua própria história, no ato de observar-se observando, no ato de ver a si próprio como um terceiro, fosse de fato imortal.
3) Ulisses chora. E, depois de ouvir o aedo, resolve gastar quatro livros da Odisseia (do 9 ao 12) para narrar ele mesmo suas histórias - as apologoi. É a estranheza de reconhecer-se como um outro, como um terceiro, que faz nascer em Ulisses o desejo de narrar - para, a partir disso, sobrepor-se à própria morte, ser, ainda que momentaneamente, maior que sua própria finitude. Tudo acontece porque Ulisses vê a si próprio como protagonista da história, mas não como destinatário. Essa disjunção pode servir como uma cena inaugural arcaica de toda a tensão moderna entre vida e narração.

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