quarta-feira, 23 de maio de 2012

O procedimento plástico

1) Uma das coisas que Alan Pauls falou, quando o encontrei em 14 de junho de 2010, foi que o campo das artes plásticas oferecia, em termos de ideias e criatividade, muito mais do que o campo da literatura. E deixou claro que via esse fato tanto no lado da criação quanto no lado da crítica - citou, para o primeiro caso, Anish Kapoor, e, no campo da crítica, mencionou com entusiasmo o nome de Georges Didi-Huberman. Pauls não chegou a relacionar seu juízo sobre a literatura e as artes plásticas com a realização de sua própria obra ficcional, mas, se pensarmos em seu romance O passado, relembrando a complexidade e o espaço reservado para o personagem Riltse (um artista plástico profundamente perturbado), vemos que essa constatação de Pauls, aparentemente casual e ligeira, é, na verdade, fruto de uma reflexão antiga e, ainda mais importante, posta em teste naquilo que Piglia chamou de "laboratório do escritor" - ou seja, seus livros.
2) Há uma linhagem da literatura contemporânea que evidentemente partilha do interesse de Pauls pelo campo das artes plásticas - uma linhagem que se forma quando o interesse ultrapassa a simples opinião e se transforma em elemento transfigurador da prosa ficcional. Sebald, Vila-Matas e Mario Bellatin. Bernardo Carvalho, Paul Auster e Don DeLillo - este com sólidas contribuições para este mapeamento, como A artista do corpo e Ponto ômega. Cada um deles operando a partir de seus registros pessoais, mas com uma preocupação comum: ultrapassar a mera representação (um artista como personagem, a realização de um artefato artístico ao longo da narrativa, etc) e alcançar, somente com a linguagem, o correlato textual de um procedimento plástico.        
3) Com seu último livro, Michel Houellebecq confere um tom ainda mais complexo a essa linhagem da literatura contemporânea. O mapa e o território, lançado em 2010 e vencedor do Prêmio Goncourt no mesmo ano, conta a história de Jed Martin, um depressivo artista plástico francês que começa sua carreira com fotografia, continua com pintura a óleo e termina com instalações videográficas. "Em seus títulos, como na pintura em si", escreve Michel Houellebecq, "Martin é simples e direto: descreve o mundo, não se autorizando, senão raramente, qualquer notação poética, um subtítulo à guisa de comentário. Não obstante, é o que faz numa de suas obras mais bem-sucedidas, Bill Gates e Steve Jobs discutem o futuro da informática, que decidiu subintitular A conversa de Palo Alto”. O mapa e o território. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 177.

domingo, 13 de maio de 2012

Ulisses chora

1) Em Sunset Park, o livro de Paul Auster, Miles Heller relembra o momento em que decidiu viajar e desaparecer da vida de todos que conhecia (especialmente seus pais) durante sete anos. Miles estava no lugar errado na hora errada: escutou, por engano, por acaso, uma conversa de seus pais - uma conversa cujo assunto principal era ele, Miles. De forma violenta e inesperada, Miles teve a oportunidade de contemplar a si próprio de uma perspectiva exterior - escondido, acompanhava aqueles que falavam sobre ele como se ele não estivesse ali, e Miles estranha o fato de que, em certo sentido, ele realmente não estava ali, e esse auto-estranhamento terminou por invadir toda sua existência e ele não encontrou outra alternativa que não fugir.   

A reação apropriada seria voltar para seu quarto e fechar a porta. Mesmo na hora em que estava parado no corredor escutando os pais, sabia que não tinha nenhum direito de estar ali, que devia se retirar, mas não conseguia impedir, estava curioso demais, ávido demais para descobrir o que estava acontecendo, e assim não se mexeu e, pela primeira vez na vida, escutou escondido uma conversa particular dos pais e, como a conversa em grande parte tratava dele, foi a primeira vez que ouviu os pais ou qualquer outra pessoa falar sobre ele pelas costas.
Ele é diferente, Willa estava dizendo. Há nele uma raiva e uma frieza que me assustam e eu o detesto pelo que fez com você.

Paul Auster. Sunset Park
Tradução Rubens Figueiredo. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 28-29.

2) Esse motivo foi utilizado também por Javier Marías - especialmente em Todas las almas, quando Marías fala do eavesdropping (com a importante diferença que o eavesdropping é uma escuta deliberada, porém não menos estranhada). Não há dúvida que o criador desse procedimento de estranhamento foi Homero. Na Odisseia, Ulisses está escondido na corte dos Feácios - de repente, por engano, por acaso, começa a escutar sua própria história. O poeta da corte, o aedo dos Feácios (que é cego como Tirésias, cego como Homero), começa a contar, em versos, a história de Ulisses. Escondido, o heroi experimenta um profundo estranhamento ao ouvir sua história como se não estivesse ali. Há uma espécie de fama póstuma na fala do aedo, como se Ulisses já estivesse morto - congelado na glória da eternidade. Como se Ulisses, no ato de escutar sua própria história, no ato de observar-se observando, no ato de ver a si próprio como um terceiro, fosse de fato imortal.
3) Ulisses chora. E, depois de ouvir o aedo, resolve gastar quatro livros da Odisseia (do 9 ao 12) para narrar ele mesmo suas histórias - as apologoi. É a estranheza de reconhecer-se como um outro, como um terceiro, que faz nascer em Ulisses o desejo de narrar - para, a partir disso, sobrepor-se à própria morte, ser, ainda que momentaneamente, maior que sua própria finitude. Tudo acontece porque Ulisses vê a si próprio como protagonista da história, mas não como destinatário. Essa disjunção pode servir como uma cena inaugural arcaica de toda a tensão moderna entre vida e narração.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

A inocência é uma invenção dos modernos

O internato foi destruído. Não existe mais. Quando soube, não pude esconder minha satisfação. Me parecia imortal. Até mesmo a majestosa escadaria de mármore e as camas circundadas de gazes, que anunciavam candor e morte, foram demolidos. Disse a Frédérique, a ela podia contar, como a destruição daquele prédio me deu un parfait contentement (assim está escrito em uma carta do tarô). Também disse a Frédérique que talvez tenham sido nossos pensamentos, ou as emanações que habitam a idade da inocência, a destruí-lo. Ela dizia que a inocência é uma invenção dos modernos.

Fleur Jaeggy. I beati anni del castigo
Milano: Adelphi, 1989, p. 79-80.
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1) A dimensão do viver-junto é, também, a dimensão do afeto: a proximidade dos corpos exige, como contrapartida, o desenvolvimento dos afetos - a direta e inexorável influência de um corpo sobre o outro. A narradora de Fleur Jaeggy, depois de anos e anos vendo outras meninas chegarem e partirem, finalmente se apaixona por Frédérique - mais velha, misteriosa, como se já tivesse vivido toda sua vida por antecipação. No Jakob von Gunten de Walser, Jakob também se apaixona - muitos de seus dias são preenchidos pela observação dos movimentos de Klaus, tão viril, decidido, desprovido de dúvidas (seu oposto, em suma).
2) Walser, no entanto, não parece nutrir qualquer interesse sobre o futuro de seu instituto - ou o futuro das pessoas do passado, dos prédios do passado, das imagens do passado. Talvez venha daí toda a estranheza de livros como Doutor Pasavento, de Vila-Matas, ou I beati anni del castigo, de Fleur Jaeggy - ou de O estádio de Wimbledon, de Daniele Del Giudice. Tentam rastrear aquilo que, desde o início, foi pensado como improvisado, fugidio, feito de ar - e fazem, ainda por cima, de forma ficcional, como se dissolvessem um punhado de areia dentro do oceano.
3) Quando Sebald decide escrever sobre Walser, quando esse Sebald tão dependente dos rastros, da documentalidade e do confronto com os escombros do passado decide escrever sobre Walser, deve necessariamente encontrar um ponto de apoio - e essa referência é seu avô, que morreu no mesmo ano de Walser, 1956. Não é curioso que nesse ano, 1956, Ernst Jünger decida finalmente publicar sua tradução dos Pensamentos de Antoine de Rivarol (1753 - 1801), um projeto que Jünger preparava desde a II Guerra, essa guerra que ele registrou com seu corpo e seus diários, guerra cuja história e destruição foram tão importantes para Sebald, sua vida e sua poética? A leitura de Jünger de seu mundo, em 1956, passava pelo resgate de uma figura obscura do passado e, principalmente, passava por uma ética da citação, da tradução e da apropriação de um outro - sua resposta ao caos era uma resposta anacrônica, uma sorte de necromancia através do texto, um texto que mesclava ensaio, citação, glosa e cotejo, um híbrido.
  

quarta-feira, 9 de maio de 2012

O grau zero do estar-no-mundo

1) Justamente por seu caráter lacunar e sucinto, I beati anni del castigo fica ainda mais sensível ao influxo de outros livros e autores. A narrativa transmite uma espécie de grau zero do estar-no-mundo - como se a narradora, ao resgatar seus anos de educação, seus anos de castigo, finalmente pudesse dar uma amostra do quão eficaz foi seu apagamento, de como sua vida futura foi determinada por suas vivências desses anos. A narrativa da memória mimetiza o próprio lugar onde os eventos aconteceram - e é particularmente inquietante descobrir, nas últimas linhas do romance, a dimensão da vacuidade desse espaço até então apenas relembrado.
2) Assim como no Jakob von Gunten de Walser, um casal toma conta do instituto - e a mulher tem o papel determinante: Frau Benjamenta para Walser, Frau Hofstetter para Jaeggy. O livro de Jaeggy é também um excelente exemplo daquilo que Roland Barthes definiu como o viver-junto: todo o campo ficcional que se forma a partir do arranjo contingente de corpos em um espaço restrito e povoado de tensões permanentes (no caso de A montanha mágica, de Thomas Mann, a tensão permanente é, do lado de dentro, a morte e, do lado de fora, a guerra; em I beati anni del castigo, a tensão vem daquilo que Jaeggy chama de "castigo", ou seja, a lenta, progressiva e inexorável transformação da espontaneidade infantil em conduta, cultura, educação).
3) No livro de Jaeggy, contudo, o viver-junto barthesiano está ligado ao Neutro - essa categoria de Blanchot que Barthes também retoma em um seminário. Na narrativa de Jaeggy (e também na do Walser de Jakob), o neutro se funda a partir da permanente simultaneidade de afirmação e negação - enquanto o tempo passa, as crianças crescem, as aulas acontecem, ou seja, ao mesmo tempo em que as experiências se acumulam e se encadeiam, há, como meta final dessa progressão, um esvaziamento, um silenciamento, uma celebração da impossibilidade de criar, de ser o que quer que se possa ser. Esse neutro, fundado na co-existência de fundação e destruição, só pode existir no ambiente restrito do instituto - um Neutro, portanto, que é filtrado e complexificado pelo viver-junto. 

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Os beatos anos

1) A primeira questão que aparece é: como traduzir a palavra beati, que aparece no título original? I beati anni del castigo - a história do termo é longa, pois vem direto do latim ("beatum") e acumulou uma série de usos ao longo dos séculos. Podemos pensar, por exemplo, no livro de Antonio Tabucchi - Os voláteis do Beato Angelico. Beato Angelico foi um monge pintor, que escolheu o nome "Beato" para si porque a palavra representava, para ele, a "felicidade" e "fortuna" de servir a Deus. Antes de Angelico, portanto, a ênfase de "beato" estava mais sobre a "felicidade" do que sobre a "religiosidade". 
2) Uma tradução literal - "Os beatos anos do castigo" - talvez não alcance as camadas mais profundas do romance. Por outro lado, a tradução ao espanhol (Los hermosos años del castigo), ao francês (Les années bienheureuses du châtiment) e ao inglês (Sweet days of discipline) reforçam apenas o lado gozoso do contexto, optando por deixar de lado o sentido por vezes espiritual de beatum.    
3) Essa palavra, portanto, desde muito cedo, acumula uma carga religiosa que é por vezes enganosa. Há uma carga mística no livro de Jaeggy - o colégio como um espaço de abandono do ser, como um espaço de esvaziamento das pulsões individuais -, que ganha ainda mais força quando os "anos beatos" ou "anos felizes" se tornam "anos de castigo". Os anos de castigo são justamente os anos de educação, o tempo que leva para uma pessoa passar do estado "natural" para o estado "civilizado" - porque essa é uma das principais ênfases que coloca Jaeggy: como uma criança aparentemente normal pode se tornar, sob os estímulos corretos, uma figura anônima e apática. 

quinta-feira, 3 de maio de 2012

I beati anni del castigo

Aos quatorze anos eu estudava em um internato no Appenzell. Um lugar no qual Robert Walser havia feito muitas caminhadas quando estava no manicômio, em Herisau, não muito longe do nosso instittuto. Morreu na neve. Fotografias mostram suas pegadas e a posição do corpo na neve. Nós não conhecíamos o escritor. Nem mesmo nossa professora de literatura o conhecia. Às vezes penso como seria bonito morrer assim, depois de um passeio, deixar-se cair num sepulcro natural, na neve do Appenzell, depois de quase trinta anos de manicômio, em Herisau. É realmente uma pena que não soubéssemos da existência de Walser, teríamos levado uma flor para ele.

Fleur Jaeggy. I beati anni del castigo.
Milano: Adelphi, 1989, p. 9
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A primeira vez que li o nome "Fleur Jaeggy" foi em Doctor Pasavento, o romance de Vila-Matas. Escrevendo em espanhol, Vila-Matas cita o título do livro em francês, Les années bienheureuses du châtiment - um livro escrito originalmente em italiano, publicado em 1989. Grande parte do fascínio de Doctor Pasavento está em sua maníaca perseguição a Robert Walser, e tudo que Vila-Matas fala sobre o livro de Jaeggy é que se passa rigorosamente no mesmo lugar em que Walser viveu suas últimas décadas de vida. Primeiro pensei que fosse um livro inventado por Vila-Matas, como tantos outros. Quando verifiquei a autenticidade de Fleur Jaeggy e I beati anni del castigo, passei a imaginar como seria uma narrativa que toma como ponto de partida a geografia crepuscular de Robert Walser. Depois de finalmente ler o livro, descubro que esse caráter parasitário é apenas a superfície - o cerne é muito maior, feito de angústia, vazio e um silencioso desespero diante daquilo que poderíamos chamar, no sentido que dava Gombrowicz a essa palavra, de maturidade.