terça-feira, 24 de abril de 2012

Ler é um vício

Seu aluguel é baixo, pois mora num apartamento pequeno, num bairro pobre, e, além de gastar dinheiro com as necessidades elementares, o único luxo que se permite é comprar livros, livros de capa mole, em geral romances, romances americanos, romances ingleses, romances estrangeiros traduzidos, mas no fim os livros acabam sendo menos um luxo do que uma necessidade, e ler é um vício do qual não tem a menor vontade de se curar.

Paul Auster. Sunset Park
Tradução de Rubens Figueiredo. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 11.

Ler é um vício do qual não tem a menor vontade de se curar.
1) Sempre a leitura paranoica, a leitura obsessiva, a leitura mágica - se paro de ler, o mundo explode. Como Arturo Belano, n'Os detetives selvagens, que molha todos seus livros (e os livros que pega emprestado) porque insiste em lê-los até mesmo durante o banho. Como um mesmo pedaço de papel, contendo rigorosamente os mesmos signos impressos, pode levar duas pessoas diferentes a lugares completamente diversos entre si?
Ler é um vício do qual não tem a menor vontade de se curar.
2) O drama de Hant'a, o protagonista de Hrabal em Uma solidão ruidosa, é o drama da leitura compulsiva - uma leitura compulsiva que se torna ainda mais terrível porque ele insiste em ter seus livros sempre por perto, sempre cada vez mais perto, até morrer. A leitura, nesse caso, é a fase inicial de uma doença da acumulação, um início que se camufla de horizonte, porque, para ler, é preciso ter sempre mais e mais. Porque o vício é sempre o vazio camuflado da repetição.
Ler é um vício do qual não tem a menor vontade de se curar.
3) Como aquele homem, em A noite do oráculo, de Paul Auster, que preenche um abrigo subterrâneo com listas telefônicas de todos os cantos do mundo, de todos os anos, de todas as línguas. Que espécie de instinto de sobrevivência é esse que vai numa direção completamente diversa da portabilidade, por exemplo? A intenção desse homem, evidentemente, não é fugir (como Beckett, como Duchamp, como Baudelaire) - sua intenção é permanecer e, quando chegar o momento, morrer com seus livros.
  

quinta-feira, 19 de abril de 2012

As coisas que chamam, 1

Ao folhear um livro ilustrado sobre os manuscritos do Mar Morto, certa tarde, topou com algumas fotografias de coisas que tinham sido desenterradas junto com os textos em pergaminhos: pratos e utensílios para comer, cestos de palha, potes, jarras.
Todos absolutamente intactos.
Examinou‑os com todo cuidado durante vários minutos, sem compreender de forma alguma por que achava tais objetos tão fascinantes, e então, depois de mais alguns momentos, finalmente ele se deu conta. Os desenhos decorativos dos pratos eram idênticos aos desenhos dos pratos na vitrine da loja do outro lado da rua, em frente ao prédio onde ele morava. Os cestos de palha eram idênticos aos cestos que milhões de europeus usam hoje em dia para fazer compras. As coisas nas fotografias tinham dois mil anos de idade e, no entanto, pareciam completamente novas, completamente contemporâneas.
Tal foi a revelação que modificou seu pensamento a respeito do tempo humano: se uma pessoa de dois mil anos atrás, morando num remoto posto avançado do Império Romano, podia conceber um utensílio doméstico que parecia exatamente igual a um utensílio doméstico de hoje em dia, como é que a mente, o coração ou o interior daquela pessoa podiam ser diferentes dos dele mesmo?

Paul Auster. Sunset Park
Tradução de Rubens Figueiredo. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 70.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

As coisas chamam

O número de suas fotografias já alcança a casa dos milhares e, no seu arquivo, é possível encontrar fotos de livros, sapatos e pinturas a óleo, pianos e torradeiras, bonecas, aparelhos de chá e meias sujas, televisores e jogos de tabuleiro, vestidos de baile e raquetes de tênis, sofás, lingerie de seda, pistolas para calafetar fissuras, percevejos, bonequinhos de plástico de heróis infantis, batons, fuzis, colchões desbotados, facas e garfos, fichas de pôquer, uma coleção de selos e um canarinho morto no fundo de uma gaiola.

Ele não tem a menor ideia do motivo por que se sente compelido a tirar essas fotos. Compreende que é uma busca vã, sem nenhum possível benefício para ninguém, e mesmo assim toda vez que entra numa casa sente que as coisas chamam por ele, falam com ele nas vozes das pessoas que não estão mais ali, pedem a ele para serem olhadas pela última vez, antes de serem descartadas.

Paul Auster. Sunset Park.
Tradução de Rubens Figueiredo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 9

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Lição de distância

1) É preciso apreciar a obra de arte partindo do procedimento que ela própria engendra e coloca em funcionamento - outras obras e outros procedimentos servem, até certo ponto, como pontos de fuga e linhas de contraste (como um perito na cena de um crime que, diante de um traço qualquer - um objeto esquecido, uma pegada, o fragmento de algum corpo -, coloca um elemento conhecido - uma caneta Bic, uma cédula de dinheiro - para dar a perspectiva necessária para a fotografia (o recurso que permite levar a cena do crime para outro lugar).
2) No caso do livro de Michele Mari, Todo o ferro da Torre Eiffel, a proximidade da trama ficcional com fatos históricos (e, ainda mais especificamente, a escolha de Walter Benjamin como personagem) abre no mínimo duas possibilidades de contraste: Sebald e Thomas Pynchon. A escolha do período histórico leva a Sebald; o estilo e a liberdade com elementos fantásticos leva a Pynchon - Mari faz uma sorte de Arco-íris da gravidade com o foco mais restrito (somente Paris em 1936 - mas o faz com uma profusão de personagens e histórias paralelas que toca o universo de Pynchon).
3) Talvez o que esteja em jogo é o grau de ilusão de certeza histórica que a ficção potencialmente oferece ao leitor. Nesse sentido, Sebald e Pynchon estão mais próximos do que se poderia imaginar: enquanto o primeiro defende a nudez completa da ignorância e parcialidade do narrador (com a tomada de posição a partir do traço e da documentalidade, como na História natural da destruição), o segundo alcança o mesmo efeito a partir do absurdo, do acúmulo, da construção ficcional de um "real" completamente esvaziado (como se devolvesse o "real" à sua condição postiça, sua condição de prótese, de evasão).

domingo, 8 de abril de 2012

Todo o ferro da Torre Eiffel, 2

1) Franz Werfel (Praga, 1890 - Los Angeles, 1945). Serviu no Exército Austro-Húngaro. Escreveu um gigantesco romance - Os quarenta dias de Musa Dagh - sobre o genocídio dos armênios pelas mãos dos turcos. Fugiu dos nazistas duas vezes: primeiro para a França, depois para os Estados Unidos.
2) Leo Perutz (Praga, 1882 - Bad Ischl, Áustria, 1957). Escritor e matemático (assim como o mais recente Péter Esterházy). Trabalhou em uma companhia de seguros, escreveu onze romances. Também fugiu dos nazistas - foi para Israel.
3) Gustav Meyrink (Viena, 1868 - Starnberg, 1932). Filho ilegítimo de um barão com uma atriz. Profundamente ligado a tudo que dizia respeito a ocultismo, satanismo e mistérios do tipo - praticava ioga e traduziu para o alemão o Livro dos mortos. Assim como aconteceu com Hugo von Hofmannsthal, Meyrink morreu pouco tempo depois do suicídio de seu primogênito.
4) Charles Robert Maturin (Dublin, 1782-1824). Autor de um romance sobre um homem que faz um pacto com o demônio - Melmoth the Wanderer. Maturin era um pastor anglicano - e era também um parente distante de Oscar Wilde. Balzac gostava tanto do livro de Maturin que chegou a escrever uma espécie de continuação: Melmoth réconcilié, de 1835.
5) Ernst Weiss (Brno, 1882 - Paris, 1940). Serviu no Exército como médico. Continuou na profissão depois da guerra mas, com a chegada do nazismo, teve que abandonar tudo e fugir para Paris, onde viveu da mão para a boca. Foi amigo de Kafka e escreveu um romance sobre a cegueira psicossomática que afligiu Hitler depois da I Guerra Mundial - o livro se chama A testemunha ocular e o protagonista é identificado como "A. H.". Weiss "morreu pela própria mão", como escreveria Borges.

sábado, 7 de abril de 2012

Todo o ferro da Torre Eiffel, 1

Chega um momento em que o livro de Michele Mari fica enfadonho - um pouco depois da metade, quando o acúmulo de personagens e tramas fica excessivo, deixando a história derivativa e um pouco sem pé nem cabeça. Mari quer falar de tudo - tudo que lhe parece importante no contexto de Walter Benjamin nos anos 1930: vanguardas, autômatos, passagens, colecionismo, bibliotecas, homens em fuga, cidades, conspirações, esoterismo, satanismo, suicídio, nazismo, escritores obscuros, manuscritos perdidos, jogos de xadrez. Há uma pesquisa vasta dando base ao livro, mas não há costura, traçado, escolha - talvez a falta de um editor ou, numa especulação um pouco mais profunda, faltou o tipo de auto-consciência criativa que leva a cortar, e não a acrescentar; que leva a silenciar. Algo no sentido do que pretendia Cortázar quando dizia que escrevia com a tesoura - cortando a própria carne na escritura, como pensava Deleuze. Não há dúvida de que Todo o ferro da Torre Eiffel é o duplo monstruoso de História abreviada da literatura portátil, de Vila-Matas. Ambos transitam pelo mesmo período, compartilham algumas ideias e muitos personagens (Roussel, Duchamp, Benjamin), mas o tratamento formal e estilístico é completamente diverso: Vila-Matas é conciso, documental, lacunar, salientando as conexões só até certo ponto, enquanto Mari espalha os detalhes ao máximo, revelando minúcias, indo e voltando com histórias que não se completam.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Os subterrâneos

1) André Gide foi à União Soviética em 1934, para participar do I Congresso dos Escritores Socialistas, que aconteceu em Moscou. Foi o evento que marcou o início da queda de Isaac Babel - que já vinha sendo criticado nos círculos formalistas por sua falta de comprometimento. Babel, quando tomou a palavra no Congresso, disse que estava se tornando "o mestre de um novo gênero literário: o silêncio". Será que Gide encontrou Babel pelos corredores do evento? Será que prestou atenção àquele homem que simbolizava tão bem a transformação da esperança em terror? Babel falava daquele "silêncio das sereias" que falava Kafka - será que Gide chegou a perceber, mesmo que rapidamente, a enunciação dessa poética de Babel?
2) O canto das sereias penetrava tudo, escreve Kafka. Ulisses porém não pensou nisso. Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus pequenos recursos. Ainda que a "alegria inocente" não seja muito condizente com seu temperamento, imagino que Babel poderia encontrar-se em parte das palavras de Kafka - "ir de encontro"; "pequenos recursos" -, e encontrar-se também nesse estupor diante da aparição de formas subterrâneas, estranhas a tudo que já se imaginou mas, ao mesmo tempo, familiares.
3) Durante o Congresso, Gide certamente entrou em contato com aquilo que acontecia de novo na cena literária soviética - especialmente no que dizia respeito ao interminável trabalho de Mikhail Bulgákov, O Mestre e Margarida. Não escapou a Gide - mesmo que o pensamento completo tenha vindo só anos depois - a inquietante coincidência de tantos trabalhos lidando com a emergência do demoníaco do tecido das cidades e nas vidas dos homens: Mephisto, de Klaus Mann; Confissão de um assassino, de Joseph Roth; O cavaleiro sueco, de Leo Perutz - todos da década de 1930 (e, mais tarde, Satã em Gorai, de Isaac Bashevis Singer).