segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

O homem que rasgava papel

1) Esse é o título de um conto que Andrzej Kusniewicz publicou na década de 1960: o homem que rasgava papel. O conto é breve e não dá indicações precisas sobre as razões para esse homem se ocupar dessa atividade - tudo que sabemos é que estamos na Polônia, nos anos posteriores à Primeira Guerra Mundial. O que realmente importa, na história, é a satisfação que o homem encontra no ato de rasgar papel: o narrador escreve sobre o prazer de ver os pedaços se multiplicarem, como se aquela atividade tivesse algum sentido mágico, como se as mãos que rasgam o papel pudessem operar uma espécie de sortilégio da multiplicação. Um cartaz, uma série de embalagens de papelão, livros, folhas imensas de papel de parede: tudo fica em pedaços depois de passar pelas mãos de Miroslav, o homem que rasgava papel.
2) Não é possível afirmar a existência de qualquer vínculo entre Kusniewicz e Elias Canetti, muito menos afirmar que o primeiro tenha lido Massa e poder. Contudo, é bastante intrigante a forma com que Kusniewicz coloca em prática, na escritura de O homem que rasgava papel, algumas das reflexões de Canetti sobre a massa, o soberano e a paranoia. Do pouco que sabemos sobre Miroslav, o personagem do conto, dois elementos se destacam: o prazer na multiplicação realizada por suas próprias mãos e um progressivo sentimento de desconfiança com relação àqueles que o rodeiam - um sentimento que, no fim do conto, o leva a um trágico estágio paranoico. Uma atmosfera completamente distinta daquela que Hrabal apresenta em Uma solidão ruidosa, ainda que sejam temas bastante próximos.
3) Segundo Canetti, o sentimento da massa é anterior à própria constituição do indivíduo - um dos primeiros padrões nascidos na mente desse novo sujeito é justamente o desejo de ser massa, de se perder na multidão. O soberano deseja multiplicar a multidão sob seu domínio - e deseja transformar a multidão que está do outro lado, do lado de seus inimigos, em pilhas de cadáveres. Canetti percorre a história das civilizações procurando sinais da massa - areia, água, fogo, pilhas de cabeças, plantações, coleções, formações de exércitos, florestas, cidades. O soberano odeia os sobreviventes - pois são eles que identificam, simbolicamente, o esfacelamento futuro da soberania. O salário do pecado - conforme as palavras do apóstolo Paulo, também ele um mobilizador das massas -, para o soberano, não é a morte: é a paranoia - que o persegue onde quer que vá, que não o deixa dormir, comer ou matar em paz.

Nenhum comentário:

Postar um comentário