terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Perec e o cinema

Havia, sobretudo, o cinema.
E era sem dúvida o único campo em que a sensibilidade deles tinha aprendido tudo. Aí, nada deviam a modelos. Por sua idade e formação, pertenciam a essa primeira geração para a qual o cinema foi, mais que uma arte, uma evidência: sempre o haviam conhecido, e não como forma balbuciante, mas já de saída com suas obras-primas, sua mitologia.
Às vezes achavam que tinham crescido junto com ele, e que o compreendiam melhor do que ninguém antes deles soubera compreender. Eram cinéfilos. Era sua primeira paixão: a ela se dedicavam toda noite, ou quase. Gostavam de imagens, por pouco que fossem belas, que os arrastassem, que os encantassem, que os fascinassem. Gostavam da conquista do espaço, do tempo, do movimento, gostavam do turbilhão das ruas de Nova York, do torpor dos trópicos, da violência dos saloons.
Não eram muito sectários, como esses espíritos obtusos que só juram por um único Eisenstein, Buñuel ou Antonioni, ou ainda — precisa-se de tudo para fazer um mundo — por Carné, Vidor, Aldrich ou Hitchcock, nem muito ecléticos, como essas criaturas infantis que perdem todo senso crítico e gritam “gênio” por pouco que um céu azul seja azul-céu, ou que o vermelho esmaecido do vestido de Cyd Charisse se destaque contra o vermelho-vivo do sofá de Robert Taylor.
Bom gosto não lhes faltava.
Tinham um forte preconceito contra o chamado cinema sério, que os levava a achar ainda mais bonitas as obras que esse qualificativo não era suficiente para tornar vãs (mas, mesmo assim, diziam, e tinham razão, Marienbad, que merda!), uma simpatia quase exagerada pelos westerns, os thrillers, as comédias americanas, e por essas aventuras espantosas, repletas de arroubos líricos, imagens suntuosas, belezas fulgurantes e quase inexplicáveis, que eram, por exemplo — sempre se lembravam delas —, Lola, Encruzilhada de destinos, Assim estava escrito, Palavras ao vento.
Raramente iam ao concerto, menos ainda ao teatro. Mas se encontravam, sem ter combinado, na Cinemateca, no Passy, no Napoléon, ou nesses cineminhas de bairro, o Kursaal, em Gobelins, o Texas, em Montparnasse, o Bikini, o Mexico, na praça Clichy, o Alcazar, em Belleville, outros mais, perto da Bastilha ou no Quinzième, essas salas sem graça, mal equipadas, que pareciam ser frequentadas apenas por uma clientela heterogênea de desempregados, argelinos, velhos solteirões, cinéfilos, e que programavam, em infames versões dubladas, essas obras-primas desconhecidas das quais eles se lembravam desde os quinze anos, ou esses filmes com fama de geniais, cuja lista sabiam de cor e que, fazia anos, tentavam ver, sem conseguir.
Guardavam uma lembrança maravilhosa das noites abençoadas em que tinham descoberto, ou redescoberto, quase por acaso, O pirata sangrento, ou O mundo em seus braços, ou Sombras do mal, ou Jejum de amor, ou Os cinco mil dedos do doutor T.
Infelizmente, com muita frequência, é verdade, ficavam tremendamente decepcionados. Esses filmes pelos quais tinham esperado tanto tempo, folheando quase febris, toda quarta-feira, na primeira hora, o Officiel des Spectacles, esses filmes que todo mundo garantira que eram admiráveis, às vezes entravam em cartaz. Todos se encontravam na sala, na primeira noite. A tela se iluminava e eles estremeciam de contentamento. Mas as cores datavam, as imagens pulavam, as mulheres tinham envelhecido terrivelmente; saíam, ficavam tristes. Não era o filme com que tinham sonhado. Não era esse filme total que cada um deles trazia dentro de si, esse filme perfeito que não conseguiriam esgotar. Esse filme que gostariam de ter feito. Ou, mais secretamente, talvez, que gostariam de ter vivido.

Georges Perec. As coisas: uma história dos anos sessenta.
Tradução Rosa Freire d'Aguiar. Companhia das Letras, 2012, p. 43-45.

domingo, 29 de janeiro de 2012

O espelho de Warburg

1) O historiador da arte Fritz Saxl, durante um discurso proferido, em dezembro de 1929, em homenagem a Aby Warburg, conta que o professor costumava mostrar aos seus alunos um espelho. Saxl define o momento como "inesquecível": quando Warburg lhe mostrou esse pequeno espelho etrusco, com uma representação de Prometeu. Os braços de Prometeu estão seguros no alto, pelas mãos de dois homens. "A semelhança com o suplício de Cristo", escreve Saxl, "é comovente" - e continua: "lá onde a Antiguidade formou a expressão para o mais profundo sofrimento, ela voltou a ser operante na vida de um novo tempo". O pequeno espelho servia a Warburg como uma espécie de lição material - um objeto que, com um gesto, lhe permitia introduzir o interminável tópico das sobrevivências e dos fluxos de retorno temporal dos traços que formam as imagens, os símbolos e suas leituras a cada época da história (como a foto do suplício chinês na mesa de trabalho de Bataille).
2) Warburg era um intelectual da virada do século XIX para o século XX que se ocupava, basicamente, de responder a seguinte pergunta: qual o significado que a Antiguidade assume para o artista do Renascimento? O trabalho torna-se um jogo de espelhos, de sombras, dentro de um abismo que só se multiplica: demônios arcaicos do Egito são rastreados na iconografia grega; uma iconografia que invade, por sua vez, a Europa - e que viaja à Ásia e à Índia depois de deixar o porto de Veneza ou o porto de Gênova, retornando logo em seguida para a Espanha Moura e alcançando, pela segunda vez, devidamente impura e transformada, a Itália da Alta Idade Média.
3) O espelho etrusco de Warburg aparece também no quarto painel de seu Atlas Mnemosyne, sua grande obra inacabada que mostra, diretamente a partir de imagens, o confronto que existe entre esses traços sobreviventes de vários tempos. O painel de número quatro está dedicado à violência, vitória e sofrimento entre céu e terra. São duas imagens do espelho, na parte inferior do painel. Prometeu, escolhido por Warburg como fonte primitiva da representação pictórica do suplício de Cristo (Salvatore patiens, o paciente Salvador), está na companhia de Páris - aquele que raptou Helena -, Faetonte e uma série de figuras relacionadas à guerra de Tróia. Com a junção desses elementos, Warburg procurava analisar as diferentes técnicas artísticas envolvidas na representação do sofrimento humano, do contato entre deuses e homens, as batalhas, os raptos e as agressões, em suma, a expressividade humana em um grau superlativo.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Chatwin e a montagem de tempos

1) Calasso chama a atenção, paradoxalmente, para um Chatwin em repouso - ou seja, um Chatwin observado em seus momentos pré e pós viagens. Tratando-se de um sujeito que propõe uma anatomia da inquietude, na qual o nomadismo faz parte da fisiologia do escritor, essas pausas representam um ambíguo desconforto: são os momentos da vida cotidiana, não-exótica, mas são também os momentos de escrever seus livros, ver os amigos, coletar ideias, folhear os livros. O confronto entre a vida nômade e a vida em pausa, necessária para a escritura, é um confronto entre temporalidades, como aquele que acontece no esforço de memória que Aby Warburg realiza para escrever O ritual da serpente: sua viagem aos índios Hopi, realizada na década de 1890, é posta em discurso em inícios da década de 1920 - uma sorte de exercício de livre associação baseado em suas notas de trabalho e nas imagens que coletou.
2) Outro exemplo de trabalho criativo profundamente consciente desses percalços temporais é o de César Aira - basta observar a forma como Aira faz a datação de suas histórias: cada um de seus textos leva, ao final, a data específica de seu término, o que frequentemente não coincide com as datas de lançamento, formando, consequentemente, uma cronologia borrada, míope, cindida, rachada (a cronologia da escritura e a cronologia do mercado). Calasso cita um trecho de uma carta que Chatwin lhe escreveu. Enfrentava dificuldades com seu "livro australiano" (O rastro dos cantos) e conta que descobriu um caminho lendo um livro de Calasso: A ruína de Kasch. "O único caminho é o método do cut-up", escreve Chatwin em sua carta.
3) Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou. Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar. Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar. Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar. Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora. Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar. Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz. Eclesiastes, 8. 1-8.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Chatwin, erudito cigano

Ainda no mesmo livro de Calasso, La follia che viene dalle Ninfe, há um texto sobre Bruce Chatwin, uma espécie de texto-homenagem, que serve para Calasso relembrar suas conversas com Chatwin. Segundo Calasso, Chatwin havia lhe dito que pensava em escrever um livro que tivesse a forma de uma longa carta, cujo destinatário seria ele, Calasso. Chatwin já havia pensado no título: Letter from Marble Bar. Em conversa com Salman Rushdie, Calasso descobre que Chatwin também havia planejado um livro com ele, que também já tinha título, mesmo antes de ser escrito: Arkady. Segundo Rushdie, escreve Calasso, o livro planejado por Chatwin tomaria a forma de um diálogo entre dois homens (Chatwin e Rushdie) sob uma árvore em Alice Springs. Segundo Calasso, o desenvolvimento ininterrupto de projetos e de livros-por-vir funcionava para Chatwin como uma resistência à doença, à finitude, à imobilidade. Talvez o que mais assustava Chatwin era a perspectiva de parar - parar de viajar, parar de escrever. Calasso reproduz uma definição de Rushdie, que qualifica de brilhante: Chatwin era um gypsy scholar, uma espécie de leitor infatigável sempre em movimento, nômade, pouco preocupado com fronteiras de pertencimento, um contrabandista, um errante.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A estranheza como procedimento

Roberto Calasso, em um dos ensaios de seu livro La follia che viene dalle Ninfe, de 2005 (uma coletânea de ensaios esparsos que terminaram por convergir, finalmente, ao tema da ninfa), reproduz uma história contada por Martin Buber, a história do Rabi Eisik, filho de Jekel, que morava em Cracóvia. O sonho, sonhado repetidas vezes por Eisik, lhe mostrava que ele deveria ir a Praga, pois havia um tesouro escondido embaixo da ponte que levava ao castelo do rei. O Rabi Eisik vai então a Praga e passa dias vagando pelas proximidades da ponte, sempre vigiada por sentinelas. O capitão da guarda, observando a movimentação do velhote, vai até ele e pergunta o que quer ali. O Rabi Eisik conta a história de seu sonho. O capitão dá risada e conta outra história ao Rabi, mais ou menos assim: "Veja o senhor que se os sonhos fossem confiáveis, eu deveria agora estar fazendo uma viagem inversa à sua. E, claro, não encontraria nada. O senhor saiba que durante muitos dias sonhei que encontrava um tesouro em Cracóvia, na casa de um rabino chamado Eisik, filho de Jekel, dentro da estufa. Imagine o senhor, ir a Cracóvia, onde metade dos homens se chama Eisik e a outra metade Jekel...". Eisik escuta a história do capitão sem fazer qualquer comentário e, logo em seguida, volta correndo para sua casa em Cracóvia. Calasso escreve que o ponto importante da história não é que o tesouro que procuramos está mais próximo do que pensamos - isso tornaria a história igual a milhares de outras. O ponto fundamental é que o local do tesouro deve ser revelado por um estrangeiro - alguém que sequer faz ideia da iluminação que está proporcionando. Se não tivesse encontrado o estrangeiro, o Rabi Eisik jamais teria olhado sua estufa sob o ângulo correto.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Bruno Schulz

1) Nos cinquenta anos que viveu (1892-1942), Schulz fez um pouco de tudo: desenhou, pintou, traduziu, escreveu ficção, escreveu ensaios, cartas, fez amigos. Há muito mais de Schulz do que Sanatório e Lojas de canela. Em 1936, saiu na Polônia sua tradução de O processo, de Kafka - com um posfácio generoso (alimentado pelas muitas ideias que trocava com seu amigo Witold Gombrowicz, pessoalmente e por cartas). Mesmo seus desenhos eram narrativos: frequentemente apresentam flagrantes, como se retratassem uma brusca intromissão em alguma conversa secreta. O escritor Isaac Bashevis Singer, na conversa sobre Bruno Schulz que teve com Philip Roth, frisa especialmente sua condição de interiorano tímido, chegando na cidade grande e enfrentando com temor os círculos literários já estabelecidos. Existe, contudo, outra versão da história, que está nos textos que Schulz escreve e publica na segunda metade da década de 1930 - especialmente seus textos de crítica literária. Schulz foi provavelmente o primeiro leitor público de Ferdydurke, a obra-prima de Gombrowicz. A resenha (Francesco Cataluccio reproduz alguns trechos no prefácio que está na edição brasileira de Curso de filosofia em seis horas e quinze minutos, de Gombrowicz (José Olympio, 2011)) mostra que Schulz mantinha suas leituras de psicanálise, por exemplo, bastante em dia.
2) Além de Gombrowicz, constam em suas obras completas textos críticos sobre as romancistas polonesas Maria Kuncewiczowa (1885-1989) e Zofia Nalkowska (1884-1954) - e também textos sobre Mauriac, sobre o medalhão da literatura alemã Bernhard Kellermann (resenha de um livro de 1935, Canções de amizade) e uma apreciação bastante pioneira do futuro Nobel de Literatura (em 1961) Ivo Andric. É interessante observar que pelo menos dois escritores resenhados por Schulz também se dedicavam ao desenho: o já citado Bernhard Kellermann, que estudou pintura e literatura alemã em Munique, nos primeiros anos do século XX, e Leonhard Frank, que também estudou pintura e desenho em Munique (Schulz resenhou Companheiros de sonhos, tido como um dos livros mais "expressionistas" de Frank - um rótulo que já era dado ao Alfred Döblin de Berlin Alexanderplatz, que é de 1929). Schulz também escreve sobre tradução (um texto intitulado vagamente "Três romances traduzidos") e dedica duas resenhas a escritores franceses: uma sobre o livro Regain, de Jean Giono (1895-1970), e outra sobre Irène Nemirovsky (que era russa, mas escrevia em francês).
3) O temperamento de Schulz lembra Kafka, Robert Walser e Walter Benjamin - e esse último, sensível que era aos desenhos de Daumier, George Grosz e, principalmente, à coleção iconográfica de Eduard Fuchs (que também morreu em 1940), certamente teria algo de interessante a dizer sobre a mescla entre imagem e texto proposta por Schulz (a primeira edição de Sanatório era acompanhada de reproduções de seus desenhos). Outra figura correlata é, claro, Bohumil Hrabal. Henryk Siewierski, o tradutor de Sanatório e Lojas de canela, acrescenta ao seu posfácio para este último um trecho de um depoimento de Hrabal sobre Schulz: "Viena, Budapeste, Lvov, Pribor, Budiejovice, Mikulov - mas me sinto mais em casa onde nunca fui, e aonde me levou Bruno Schulz nas suas Lojas de canela. É para mim a mais linda cidade do mundo. Desde que li as Lojas de canela mudei-me para lá, onde moro até hoje, e mesmo que nunca tenha lá estado, que importa? A ficção é às vezes mais perfeita e mais realista do que a própria realidade" (Lojas de canela. Imago, 1996, p. 170).

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O idiota da família

1) Na página 127 de Primeiro como tragédia, depois como farsa, Slavoj Zizek fala da necessidade de derrubar o grande Outro: essa entidade simultaneamente irracionalista [porque encerra em si tudo que "nunca poderemos entender" ou que "supera nossa contingência histórica"] e pseudo-humanista [porque leva adiante a trapaça que o sujeito é "inerentemente complexo", cujos atos podem ser separados da subjetividade: "o soldado também sente medo", "o nazista também tem família"].
2) Ainda segundo Zizek, no momento em que cai o grande Outro, o Líder não pode mais reivindicar uma relação privilegiada com o conhecimento, e, por fim [e isso é importante], ele se torna um idiota como todo mundo. De forma deliberadamente anacrônica, poderíamos dizer que o procedimento de Flaubert é da mesma ordem, e ele se desdobra em pelo menos dois momentos: a frase irritantemente célebre de que "Bovary sou eu" e seu projeto final e inacabado de construir uma História da Estupidez em forma de verbetes [em outras palavras, um Inventário da Idiotice].
3) Se Bovary é o grande Outro [e continua sendo, para tantos, esse receptáculo de enigma, essa Esfinge] e se o desejo de Flaubert era de fato explodir a subjetividade do autor [mantendo apenas o texto, a materialidade da concatenação das palavras], o Outro vai abaixo quando é ligado ao Eu, que é nada. Consequentemente, Bovary sou Eu, Bovary é Nada, Bovary é um idiota como todo mundo [o que nos levaria a outra frase célebre de Flaubert: "há uma Bovary em cada povoado da França"].
4) Evidentemente, Flaubert era também Bouvard, era também Pécuchet: a estupidez sempre lhe atravessou, permanentemente, ele era sensível a ela, sabia que toda condição de saber, de conhecimento, de perfeita manipulação da arte é também um pacto com a Idiotice, que sempre espreita o artista. Não há relação privilegiada com o Conhecimento possível, parece dizer Flaubert [citando Zizek]. O dicionário de Flaubert, seu Inventário da Estupidez, não é uma forma elitista de jogo de salão, é uma celebração amarga da queda do grande Outro, que somos todos nós [eis a grande fissura ontológica do pensamento: eu sou sempre o Outro do Outro]. A literatura, por fim, mostra que sou um idiota cercado por idiotas, em uma comunidade secreta cheia de senhas e sinais secretos.
5) No prefácio que escreve à edição espanhola do livro Trens rigorosamente vigiados, de Bohumil Hrabal, Monika Zgustová escreve que "entre a vida e a obra de Hrabal existe uma afinidade evidente", e cita um testemunho do próprio Hrabal: "Os erros que cometi em minha vida meus protagonistas também cometem em suas vidas", escreve ele. "Aquilo que me enche de orgulho, as coisas pequenas mas muito humanas, também enche de orgulho os meus heróis".

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Uma tatuagem no peito

Os primeiros parágrafos de A terra onde o tempo parou, livro de Bohumil Hrabal originalmente lançado em 1985 - um dos poucos livros de Hrabal lançado na Tchecoslováquia comunista, e não de forma clandestina, no exterior, pela editora de Josef Skvorecky no Canadá -, dão uma noção luminosa da poética de Hrabal: um menino, sempre que volta da escola, dá um jeito de visitar o porto, onde se encanta com a coreografia dos marujos que descarregam as mercadorias dos barcos. A linguagem fluida de Hrabal, sempre um pouco febril e rapsódica, frequentemente encontra os temas brutos, a crueza do cotidiano dos trabalhadores braçais, que se divertem de forma obscena com as risadas, as prostitutas e as bebidas. Em Hrabal, nunca estamos apenas na contemplação, apenas na brutalidade da ação ou no torpor da embriaguez: as frases oscilam por esses distintos estados de espírito, como um barco em uma tempestade. O menino que inicia A terra onde o tempo parou pede para ajudar os marujos: pega uma pá e tenta carregar as pilhas de sal que chegaram ao porto. Seu fracasso é premiado com uma série de risadas por parte dos trabalhadores - e o menino começa a chorar. Mas ele avisa que seu choro vem de uma intuição, e o momento desconfortável das risadas se transforma em uma epifania: ele chora porque observa as tatuagens que cobrem os braços e os torsos dos marujos; chora porque compreende que seu destino é ser marujo e, com todo seu coração, ele afirma seu desejo de também ter um barco a vela tatuado no peito e, enfim, tornar-se marujo. A cena construída por Hrabal lembra um quadro de Monet, Os carregadores de carvão, de 1875 - com a diferença que é sal o que carregam os marujos de Hrabal, e usando carrinhos de mão. Mas as tábuas ligando a embarcação ao porto são bastante semelhantes. Hrabal, de forma incrivelmente sensível, constrói uma ekphrasis inesperada e, por isso mesmo, esteticamente muito forte: as tatuagens, essas imagens desbotadas gravadas nas peles dos marujos, começam a se movimentar diante dos olhos do menino - os barcos começam a navegar com o movimento dos braços, com o ir e vir das pilhas de sal nos carrinhos de mão. O marujo fuma, inspira e expira, e o barco tatuado oscila no ritmo das batidas do coração, escreve Hrabal.