terça-feira, 12 de abril de 2011

Retrato do viciado

1) Se pensarmos na relação da escrita com as drogas, logo encontramos uma tradição variada de textos - e reservo especialmente os de Baudelaire, Benjamin e De Quincey. A droga está para a escrita como um propulsor, um estimulante: o haxixe para Baudelaire e Benjamin, a cocaína para Freud e Holmes (que não escrevia diretamente no papel, mas ditava - ditador de Watson). Billy, o narrador do Retrato de um viciado quando jovem (Companhia das Letras, 2011), mesmo sem o saber, continua uma linhagem da consciência-droga, posta como procedimento de memória e não de esquecimento - ele escreve: ao contrário da maioria das pessoas, o crack aguça minha memória, tornando tudo ainda pior. Baudelaire já dizia que o haxixe não altera o indivíduo, não faz ser outro, mas o amplia, o exagera e desenvolve em excesso - o indivíduo é impelido ao extremo.
2) Mas o retrato de Billy viciado leva a uma experiência do abandono e da improdutividade que faz notar toda a distância histórica até Benjamin, por exemplo. O haxixe em Benjamin é um modo de viver improdutivamente, baseado no desperdício e na invenção, como se tudo fosse exterior, como se a vida do sujeito estivesse alhures (um cálido abandono). Billy, pelo contrário, é um trapo de carne absolutamente auto-centrado, que vê agentes federais em todas as pessoas e carros de vigilância em cada esquina. Ele atualiza Beckett e Blanchot de uma forma muito desconfortável: ele deseja, com força total, o desaparecimento, o esgotamento, o esvaziamento, a morte. A intensidade posta no ato de fumar uma pedra de crack atrás da outra funciona quase como um arrebatamento romântico da mais alta voltagem.
3) Baudelaire fala de uma indolência, de "carícias leves", e olhos cheios de lágrimas; Billy treme e aborda desconhecidos na rua, oferecendo sexo e pedras de crack; o humor jubiloso trazido pelo haxixe de Baudelaire vem dos deuses, como uma oferenda àqueles que abrem as portas da percepção; Billy pesa quarenta quilos e anda de quatro procurando raspas de crack pelo chão; Baudelaire escuta música; Billy escuta sirenes e batidas violentas na porta.
3a) Estavam lhe preparando uma refeição quando um êxtase súbito o surpreendeu. Ele contempla o céu aberto: desce de lá um objeto indefinível, uma espécie de pano imenso, vindo pousar sobre a terra por quatro pontos. Dentro dele, todos os animais quadrúpedes, todos os que rastejam e todos os que voam. Uma voz se dirige a ele e diz: "Vamos, Pedro! Mata e come!" (Atos dos apóstolos, 10, 10-16).

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