quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Saer e Magris, 3

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1) Um dos momentos em que Magris faz uso da sobreposição temporal, incitada pelo fluxo do Danúbio, é durante sua visita à casa do escritor Elias Canetti. Kafka e Canetti são os escritores mais citados em Danúbio. Funcionam como contrapontos a figuras literárias menos representativas e também como figuras de intervenção sobre um cenário inóspito ou particularmente difícil de ser apreendido. Nesses casos, Magris recorre a Kafka e a Canetti não para explicar as incongruências, mas para apreciá-las em suas indecidibilidades.
2) Diante da casa de Canetti, Magris se questiona a respeito da cisão que o escritor escolheu para si mesmo, um corte que dividiu sua obra entre um primeiro momento de provocação e coragem intelectual e um segundo momento de explicação e homogeneização. Alçado à fama, Magris diz que Canetti impõe a si um autocomentário, uma descrição enfadonha daquilo que já teve lugar, trocando Massa e poder e Auto-de-fé, os livros que permaneceram durante décadas profundamente desconfortáveis para a sociedade europeia, por seus volumes autobiográficos, que terminam por congelar toda a energia revolucionária de suas primeiras obras.
3) Magris diz mais: o primeiro Canetti jamais ganharia o Nobel sem a intervenção do segundo Canetti, um Canetti mais velho, moldado pelas concessões, dirigindo uma recepção mais amena e historicamente apaziguada de seus próprios livros. E, nesse momento, Magris recorre novamente a Kafka, ilustrando a explicação de Canetti com o seguinte paralelo: como se, com decênios de atraso, se descobrisse o Processo kafkiano e reaparecesse Kafka, mais idoso e amável, a servir de guia em seus próprios labirintos.
4) Kafka e Canetti funcionam como duplos para Magris, unidos até certo ponto e irremediavelmente opostos depois disso. Sua visita à casa de Canetti está no fim do livro. Há um baque na leitura quando Magris enuncia sua crítica, um corte abrupto nas relações com um autor, Canetti, que vinha recebendo elogios toda vez que aparecia na narrativa.
5) Magris não apenas confronta dois Canettis, separados no tempo, como faz emergir da tumba um Kafka póstumo, para acentuar a sua decepção com o gesto explicativo de Canetti.
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