sexta-feira, 30 de abril de 2010

O estilo de Bernhard Schlink

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Muito antes do filme, O leitor já era um grande livro. Um bom livro. Um bom livro porque o problema que Schlink colocava em pauta era fundamental – o mesmo problema que Sebald destrinchou nas suas conferências em Zurique sobre literatura e guerra aérea: o silêncio da literatura alemã diante do passado nazista, etc. Schlink é o caso típico da articulação de um estilo supérfluo com um tema/motivo interessantíssimo. Na medida em que apresenta um viés instigante para um osso duro de roer da modernidade (o nazismo, o Holocausto), O leitor é imprescindível – mas não é suficiente para tornar Schlink um escritor imprescindível, sobretudo diante da inocuidade dos outros livros que apareceram.

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Aspecto interessante em Schlink: a articulação do direito com a literatura - mas em uma perspectiva diferente (suplementar) daquela que vemos em Agamben, Benjamin, Kafka ou ________. Isso continua não salvando seu estilo. Thomas Bernhard é, algumas vezes, o inverso: estilo imprescindível com temas/motivos desnecessários. A obra de arte forte é, evidentemente, aquela que antecipa, condensa e ultrapassa essa dialética entre o estilo e a temática: Coetzee, Canetti, Rubem Fonseca.

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sexta-feira, 23 de abril de 2010

O noturno da Itália (Sciascia e Bolaño)

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O noturno pode ser o sujeito que prefere a noite, que se movimenta pela noite. Também pode ser uma peça musical, em duas acepções: aquela que se toca à noite e aquela que evoca a noite. Os noturnos que evocam a noite costumam ser composições para piano solo. Noturno do Chile, de Roberto Bolaño, é uma composição de uma só voz – a voz do padre Sebastian Urrutia Lacroix. É também uma imersão na escuridão que era o Chile na década de 1970. O noturno da Itália é tocado por Leonardo Sciascia em A cada um o seu, de 1966 – uma peça a ser tocada na escuridão e que reflete em si, tal como fez Bolaño, toda a obtusidade de um país.
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A cada um o seu não tem a intensidade verborrágica de Noturno do Chile – mas compensa no humor e nas travessuras policialescas que dão em nada. Estão lá, nos dois, em quantidades abundantes: os detetives de ocasião, os literatos pedantes, as propostas absurdas, os despistes e o final aberto – “E depois se desencadeia a tormenta de merda”, finaliza Bolaño. “Um imbecil”, finaliza Sciascia. Bolaño conta a história do padre que é bolinado na varanda da mansão do grande crítico literário chileno. Sciascia conta a piada do padre que, questionado pelo arcebispo por conta da empregada que dorme na mesma cama que ele, responde que há uma tábua na cama, dividindo os espaços - “Mas e quando surge a tentação?”, pergunta o arcebispo, “Ah, aí é só retirar a tábua, senhor”, responde o padre.
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Os protagonistas são críticos literários nas horas vagas: o padre Sebastian de Bolaño é, como o próprio nome já diz, padre; Laurana, de Sciascia, é professor de italiano e latim e escreve resenhas literárias em jornais que ninguém lê. Nenhum deles é o ponto privilegiado das histórias – os acontecimentos simplesmente passam por eles, os atravessam, e tudo que temos é uma leitura torta e equivocada desse cenário ilegível. Aquilo que Sciascia trata como natural é tratado em Bolaño como adquirido – a América Latina é sempre um laboratório de testes, seja do nazismo, seja do jesuísmo.
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terça-feira, 20 de abril de 2010

Kafka para presidente

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O mercado editorial norte-americano tem um hábito muito interessante: volta e meia aparece uma nova tradução de um mesmo texto. Coetzee, em seu ensaio sobre Kafka presente na coletânea Stranger shores, faz uma análise da tradução feita pelo casal Edwin e Willa Muir. Faz também um cotejo com a tradução mais recente, assinada por Mark Harman. O casal Muir gostava muito de oferecer festas em sua casa de Connecticut, nas quais se reuniam jovens poetas, velhos escritores e emigrados europeus ligados à cultura. Ao contrário de Adorno, que odiava jazz e tudo que dizia respeito ao ambiente norte-americano, o casal Muir construiu uma sólida ponte entre Europa e América. Thomas Mann, na excursão que fez pela América na década de 1950 dando palestras (Philip Roth comenta em algum lugar o tremendo acontecimento que foi para ele ver Mann, ao vivo, em sua Universidade em Chigaco), passou também pela casa dos Muir. Um dia, aproveitando a aglomeração na praça no centro da cidade, por conta das eleições e dos protestos contra a Guerra da Coréia, Edwin e Willa tiveram a ideia de fazer uma placa: Franz Kafka for president. Parecia uma boa ideia de divulgação, afinal de contas – muito provavelmente a edição de O castelo, traduzido por eles, andava um pouco encalhada. Não fosse pelo disparo acidental de um repórter do Connecticut Post nunca compartilharíamos esse ato tão jocoso.

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Nada mais kafkiano do que Kafka transformado em presidente dos Estados Unidos da América. Kafka como um dos líderes do kibutz dos ratos. No pescoço um relicário com a efígie de Josephine. Dono da tradição oral de um punhado de nômades no deserto, mudos e empoeirados. Estão lá: Beckett, Paul Celan, Walser e Coetzee, recém-incorporado – é o dia de sua iniciação. Os outros raspam sua cabeça e o deixam sob o sol durante três dias. As palavras que Coetzee pronuncia durante os delírios são anotadas e o papel fica embaixo de uma pedra durante sete meses. Alguns dizem setenta. Esse papel é o que chamamos tradição.

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sexta-feira, 16 de abril de 2010

Grafologia

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A fim de conseguir dinheiro, Benjamin havia decidido recorrer a suas habilidades para a grafologia, que eram de fato consideráveis. Em Berna lhe mostrei, em certa ocasião, uma carta daquele que era então meu mais próximo amigo no movimento da juventude sionista, de cujo caráter acreditava possuir a imagem mais exata. Lançou à carta um olhar breve, mas penetrante, e disse em tom veemente: “honesto até a estupidez”, sem acrescentar a menor explicação, como se este tipo de homem lhe resultasse particularmente irritante. Da fato, honestidade era precisamente o que este homem irradiava.
Gershom Scholem,
Walter Benjamin - historia de una amistad, p. 148.
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terça-feira, 13 de abril de 2010

Walter Benjamin e eu (e Moscou)

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No caminho para Walter Benjamin há muitas portas. Uma das primeiras, para mim, só faz sentido retrospectivamente – naquela época eu sabia muito pouco. Eu estava no segundo ou terceiro ano de faculdade e Benjamin era para mim uma presença excessivamente anacrônica no currículo do curso. Um ensaio sobre reprodutibilidade técnica da década de 30? Nada mais obsoleto e desnecessário. Era inegável, contudo, a importância que alguns professores que eu considerava competentes davam a Benjamin. Foi com essa receptividade ambígua que eu entrei em um dos sebos da rua Regente Feijó, em uma tarde lá por 2003, procurando algum livro de literatura contemporânea esquecido na bancada a cinco reais. O que encontrei foi o Diário de Moscou de Benjamin, que chamou a atenção por ser um livro antigo da Companhia das Letras que eu nunca havia visto. Benjamin visitou Moscou brevemente, de 6 de dezembro de 1926 até primeiro de fevereiro de 1927, mas foi uma visita cheia de expectativas – sexuais, políticas, literárias. Benjamin queria tornar sua relação com a comunista Asja Lacis, que vinha cortejando há tempos, mais quente e definitiva. Acabou preterido por um concorrente mais determinado e menos ambíguo em suas decisões e posições políticas, Bernhard Reich. Benjamin foi a Moscou ver o comunismo de perto. A ideia era se filiar ao Partido. Não encontrou exatamente o que espera, frustrou-se e não fez sua carteirinha. Não se acertou com a língua também. Consequentemente, a literatura também lhe escapou. Foi apenas um vislumbre, e tudo voltou como era antes. Assim foi minha tarde na Regente Feijó: apenas um vislumbre, uma imagem que perpassou o tempo, veloz. Só agora me dou conta, etc. O livro ficou lá. O preço era algo como 10 reais, 15 reais. O exemplar estava machucado, mas nada de atrapalhasse o movimento do colecionador. Entrou para a lista dos livros que me arrependo de não ter comprado. Alguns achei depois, a maioria nunca mais.

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Gershom Scholem diz que as cartas que Benjamin lhe escreveu de Moscou vieram em um papel miserável, e escritas a lápis, algo que era bem distante dos hábitos de Benjamin (Benjamin e sua escrita microscópica feita com tinta azul – azul como seus olhos, diga-se de passagem). O dinheiro para a viagem Benjamin arranjou com Martin Buber: combinaram que ele escreveria um longo artigo sobre Moscou para a revista de Buber. Diário de Moscou, portanto, é o conjunto das notas que Benjamin fez na cidade pensando no artigo que já estava pago, mas que ainda não estava escrito. Benjamin, de certa forma, perseguia o tempo em Moscou. Benjamin saiu de Moscou de mãos abanando, exatamente como eu naquele sebo. O Diário, dizem, é uma mistura de eventos autobiográficos (Asja, Asja, Asja...) com considerações sobre a arquitetura soviética e o clima. Outro detalhe curioso é que Benjamin detestava Martin Buber desde os tempos da I Guerra – o primeiro era contra e o segundo defendia a guerra como uma vivência imprescindível para a formação do homem. Qualquer dia desses eu volto na Regente Feijó e encontro o mesmo exemplar.

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segunda-feira, 12 de abril de 2010

Separações

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Encontrei por acaso o trailer do documentário Separações, de Andrea Seligmann Silva, que vem a ser irmã de Márcio Seligmann-Silva, professor da Unicamp e o mais interessante comentador de Walter Benjamin que eu conheço – além de toda sua produção sobre a literatura pós-Auschwitz e questões como memória, testemunho, luto, etc. O documentário é autobiográfico, propondo uma reconstrução da história da família e uma reflexão sobre a fuga da mãe, Edith, dos nazistas, em 1939. A mãe de Márcio e Andrea tinha apenas três anos de idade e veio parar no Brasil. O Silva vem do pai deles, que é brasileiro, antropólogo e trabalhou muitos anos com os índios.

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A filha, de certa forma, vai resgatar as origens da mãe, que, depois de chegar ao Brasil, parece fazer um esforço para esquecer, para enterrar a Europa de uma vez por todas. É curioso o quão entranhado um percurso intelectual pode estar à vida pessoal de um sujeito, seja o percurso de cineasta da irmã Andrea, seja o percurso de crítico/professor do irmão Márcio. A força narrativa do testemunho termina por invadir, a partir de agora e retrospectivamente, todos os textos dele que li. O contato problemático do testemunho com a verdade, e com a possibilidade de existência da verdade, ganha um novo contorno não apenas com o fato de conhecermos um pouco da história da família, mas também, e principalmente, com o esforço coletivo de rememoração e verbalização dessa herança. Rostos e vozes são incorporados àquilo que, antes, era só papel e tinta.


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No ensaio “Literatura e trauma: um novo paradigma”, Seligmann-Silva desenvolve alguns pontos que configuram o trauma daqueles que passaram pelos campos de concentração. Em alguns casos, ele afirma, os traumatismos sofridos foram além da capacidade de elaboração do indivíduo, marcando, em consequência, a geração seguinte. “Sobretudo nas famílias em que os pais se protegeram do trauma negando-o e se recusando a falar dele”, escreve Seligmann-Silva, “as crianças receberam de modo inconsciente os fatos, relacionando-se com ele via fantasia”. E finaliza: “A temporalidade para essas crianças identificadas com o sofrimento de seus pais torna-se fragmentada”. É exatamente o que acontece com o próprio Seligmann-Silva, especialista em Shoah ao ponto da obsessão, convivendo com sua mãe (conforme mostra o documentário), uma sobrevivente relutante e silenciosa do Holocausto. (acrescentado em 12 de maio de 2010)

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