quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Imaginários bélicos

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Tomemos La Literatura Nazi en América, de Roberto Bolaño. Um inventário, uma enciclopédia manca, um almanaque do absurdo. A premissa é a seguinte: proliferaram nas Américas escritores de feições estéticas nazi-fascistas. Não que tenham efetivamente matado pessoas e/ou incinerado seus corpos (ainda que alguns tenham cometido, sim, coisas semelhantes). Não: cultivam posicionamentos ideológicos nazi-fascistas, que aparecem, junto com temas rascistas e/ou eugenistas, por exemplo, em suas ficções. Um delicado arranjo entre ética e estética.
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Em 2666, há uma cena na qual os críticos literários, retratados na primeira parte do romance (que são, os quatro, especialistas em Arcimboldi, o escritor alemão que motiva as 1.200 páginas do romance), estão em um táxi, que é dirigido por um paquistanês. O motorista, em determinado momento, é ríspido ou não entende o que eles querem. O táxi pára e os críticos literários começam a espancar violentamente o motorista (que usava um turbante, inclusive). Uma cena cômica e brutal, da mesma forma que certas figuras da Literatura Nazi. Indecidibilidade entre ironia e denúncia. Ser um esteta não salva você de ser um monstro. Uma coisa não anula a outra. Em certos momentos da história, parece anunciar Bolaño, uma coisa pressupõe a outra.
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O tom é outro, por exemplo, na cena do Noturno do Chile que mostra um sujeito torturado em um quartinho subterrâneo, enquanto, no andar de cima, o casal dono da casa organiza encontros literários (para identificar os subversivos de maneira mais cirúrgica). A ironia não toma parte nesse contexto, mas o debate e o anúncio persistem: para cada tertúlia no andar de cima, há uma tortura no andar de baixo. Ética e estética estão irremediavelmente ligadas, não se pensa a possibilidade de dizer sem pensar a obrigatoriedade de calar, em algum ponto. Walter Benjamin: todo documento de cultura é também um documento de barbárie. Isso condensa todo o percurso.
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Na frase final de 2666, Bolaño une (se já não estava claro o suficiente) definitivamente o imaginário bélico nazi-fascista com a América Latina. Esse é o projeto da Literatura Nazi, que atinge o ápice em 2666. A parte dos crimes em Ciudad Juarez, centenas e centenas de mulheres mortas ao longo de 10, 15 anos, é a versão latino-americana dos campos de concentração. O deslocamento de Arcimboldi para o México (que não acompanhamos, porque o romance acabou) é o nó final de uma trama minuciosamente arquitetada para mostrar que o Extermínio ainda está acontecendo, ainda está passando, reconfigurado em uma matriz hispano-hablante. Este é o local ideal, Bolaño segue anunciando, para que a barbárie floresça - amalgamada com a cultura, com o beletrismo, com a ignorância cultivada, com o senso comum travestido de europeísmos.
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Estrella distante, novela que amplia justamente uma das biografias de La Literatura Nazi, é a reescritura ficcional dos livros de Hannah Arendt, por exemplo. Especialmente a reportagem que ela faz para a New Yorker sobre o julgamento de Eichmann, que tornou-se, entre nós, Eichmann em Jerusalém. Bolaño conta a busca, anos a fio, por um assassino que nasceu nas letras chilenas e ascendeu ao poder junto com Pinochet. Foge, e seu rastro é seguido, ao longo dos anos, em revistas de literatura e filmes pornográficos. É o relato de uma busca detetivesca, que se desenrola a partir dos detalhes da mescla que Carlos Wieder faz de cultura e barbárie, ficção e psicopatia. Porém, na psicopatia latino-americana não há um Estado por trás, como ocorre na execução de Eichmann. Somente um investigador velho e enfastiado e um escritor obscuro atrás de uma história que, um dia, tocou sua juventude.
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